Revelações sobre Revelations (Iron Maiden) - Parte 1: Chesterton e a Church Socialist League - Ruídos Podcast

Revelações sobre Revelations (Iron Maiden) - Parte 1: Chesterton e a Church Socialist League

Fala galera! Esse texto era pra ter saído junto com a Autópsia de Revelations, porém, por conta de 2020 e seus charmes, não consegui concluir em tempo. Sem mais delongas, segue a Parte 1 de um total de 2 partes sobre coisas interessantes que achei ao longo da pesquisa sobre essa música tão bacana da singela banda britânica.

Como um bom admirador de Iron Maiden, sempre fui atrás dos significados das músicas, de curiosidades da banda, daquele show em Belgrado em 1986, quando eles tocaram, pela única vez, “The Loneliness of the Long Distance Runner” etc. etc. Graças ao Maiden, ao Harry Potter e a meus pais, que sempre tinham um livro à mão, me apaixonei por literatura. Li O Nome da Rosa, de Umberto Eco, graças a "Sign of the Cross"; li O Senhor das Moscas, de William Golding, graças a "Lord of the Flies" li A Balada do Velho Marinheiro, de Samuel Taylor Coleridge, graças a "Rime of the Ancient Mariner"... Enfim, deu pra ver o quanto eu valorizava as “indicações” que a banda me dava.

Bruce Dickinson (1958-)

Porém, poucos anos atrás, muitos anos após minha paixão maideniana se arrefecer, me deparo com um vídeo do Bruce Dickinson cantando o que eu acreditava ser “Revelations” com o Ian Anderson, numa versão acústica. Depois de uns minutos vendo, noto umas letras que eu não conhecia. Imediatamente me dirijo ao local onde sei que encontrarei respostas: a caixa de comentários. Lá descubro que a melodia que eu tanto estimava na primeira parte da música não era nada menos do que um hino anglicano do começo do século XX! Essa descoberta teria sido muito sofrida pro meu eu-adolescente: como podem meus músicos prediletos me fazerem escutar música de igreja?!?!?! Por sorte hoje sou uma pessoa que não se surpreende com mais nada (obrigado, século XXI). E na época em que vi o vídeo, o Bruce já mostrava que não passa de um conservador comédia apoiador do Brexit (mas que ainda canta muito e eu quero ir a um show do Maiden, por favor, nunca te pedi nada).

Após constar que de fato um hino anglicano existia e que o mesmo possuía supostamente a mesma melodia da primeira parte de “Revelations”, fui atrás de tal hino. Descubro que este se chama "O God of Earth and Altar" — ou seja, o primeiro verso da música é seu nome. E ao ouvir as versões que encontro no YouTube, fico maravilhado com ele.

Um breve parêntesis: pra me sustentar durante minha graduação, eu tocava todo domingo numa igreja batista. Confesso que era muito cansativo, tinha que acordar domingo de manhãzinha, chegar na igreja cedo pra ensaiar antes do culto, e depois de tudo ter que ouvir sermões altamente preconceituosos. O pastor tinha um prazer em falar mal de budista, chineses, russos e, principalmente, homossexuais (mas estavam me pagando e eu gosto de pensar que eles estavam investindo no futuro de um ateu convicto). Se a gente ao menos tocasse hinos bacanas como “O God of Earth and Altar”, talvez meu sofrimento fosse menor.

Depois de descobrir que danado de hino era aquele, fui atrás do compositor. E até onde pude apurar, essa é uma melodia tradicional, com compositor anônimo e tal. Uma das versões famosas é um arranjo de um compositor inglês chamado Ralph Vaughan Williams (as músicas dele são bem chatinhas, vale a pena ouvir só o arranjo do hino mesmo, que é bem legal).

G. K. Chesterton (1887-1936)

Já que não tinha compositor, bóra ver quem escreveu a letra. Rapidamente descubro que o letrista é um cara super conceituado nos meios literários: G. K. Chesterton. Ele é talvez mais conhecido por ser o autor de uma série de contos protagonizados por Padre Brown. O protagonista é um padre católico e detetive amador nas horas vagas (já tá na minha lista de leituras). Chesterton se converteu ao catolicismo em 1922 e baseou o personagem num padre que esteve envolvido nessa sua conversão. Além dos contos de Padre Brown, Chesterton escreveu uma quantidade absurda de livros, ensaios, artigos, peças teatrais, poemas, navegando em diversos gêneros como crítica literária, artística e social, ficção, teologia, entre muitas outras coisas. Ele também adorava um bom debate, e frequentemente debatia com grandes nomes da época, como Bernard Shawl, H. G. Wells e Bertrand Russell.

Uma nota bem passageira no verbete da Wikipedia sobre Chesterton me deixou curioso: ele foi membro por um período de um grupo chamado Sociedade Fabiana. Esse é um grupo socialista britânico que visa a implementação de políticas socialistas por meios democráticos, ao invés de meios revolucionários (a história desse grupo é bem interessante, vale dar uma conferida ligeira). Após notar coisas não tão bacanas dentro do grupo, como apoio à eugenia e à Segunda Guerra Boer (1899-1902), ele decide sair do grupo.

Depois dessa passagem pelo grupo socialista, Chesterton passa a declarar que não acredita que nem o socialismo nem o capitalismo são sistemas que resolverão os grandes problemas do mundo, e sugere, junto com seu amigo Hilaire Belloc, uma terceira opção, o distributismo. (Mas deixemos esse tema de lado também porque é igualmente interessante mas desvia muito nosso foco aqui).

Nesse ponto das minhas pesquisas, eu já estava adorando esta contradição: Bruce, um cara que hoje tem ideais conservadores, usou um hino de igreja escrito por um cara que teve por um tempo ideais socialistas e que sempre abominou o capitalismo. Me daria por satisfeito se a história terminasse aqui. Mas achei mais coisas que valem nota!

Pesquisando sobre o hino e de que forma ele era usado e tal (só pra desbaratinar), esbarro com dois artigos (esse e esse) sobre como esse hino foi usado pela Church Socialist League (Liga Socialista da Igreja) em 1912, quando a Inglaterra estava à beira de uma guerra civil. Essa liga organizara uma greve junto aos trabalhadores de minas, e as letras desse hino foram entoadas enquanto os manifestantes marchavam com uma petição ao arcebispo de Canterbury.

Conrad Noel (1869-1942)

A Church Socialist League (CSL) existiu entre 1906 e 1923, fundada por Conrad Noel, reverendo Percy Widdrington e outros, e fez parte de um movimento de esquerda que aflorava desde o último quarto do século XIX. Os escritos de Marx já haviam influenciado toda uma geração, o movimento dos trabalhadores estava ganhando força, elegendo membros no parlamento pela primeira vez em 1906, e a vida urbana estava afastando pessoas da igreja. No meio disso tudo, um grupo de clérigos anglicanos do norte da Inglaterra fundou a CSL, baseados nas práticas de Charles Gore, fundador da Community of the Resurrection (Comunidade da Ressurreição) e de uma outra organização similar à CSL, a Church Social Union, que tinha um caráter mais assistencialista do que socialista. A Comunidade da Ressurreição buscava um retorno às práticas dos primeiros cristãos, que eram viver em comunhão, dividir tudo e se dedicar à contemplação da vida religiosa. Mas, além disso, essa comunidade tinha um forte apelo social. Nessa comunidade, ajudar aqueles que passam por necessidades vinha antes da prática religiosa 1. Com esses ideais altamente socialistas mas também cristãos, surge a CSL. Porém, justamente por lidar com duas ideologias que apresentam vários elementos que se contradizem, ela acaba sucumbindo a brigas internas, dissolvendo-se menos de vinte anos depois de ter sido criada 2.

Voltando ao hino de Chesterton, o que fica claro é que a letra desse hino possui uma mensagem muito forte, em que tanto socialistas cristãos do início do século XX quanto vocalistas conservadores de uma banda de heavy metal do fim do século leem, escutam e se identificam. É um hino que se comunica com nossos mais profundos valores, e que cada um de nós tem uma ideia de como deveríamos agir pra deixar esse mundo um lugar melhor. Alguns acreditam ser com políticas mais igualitárias, outros têm ideias no mínimo equivocadas, porque o que 2020 nos ensinou é que o capitalismo é o responsável por todas essas desgraças que estão sendo escancaradas pela humanidade, como bilionários ficando ainda mais ricos, enquanto os pobres perdem seus empregos e ainda têm que pagar a conta das grandes corporações acreditam que a liberdade vem antes da igualdade, e que individualismo e propriedade é o que há de mais importante.

Seja quais forem seus ideais e crenças, é inegável que a letra de “O God of Earth and Altar”, de Chesterton, ainda reverberam, após mais de cem anos de sua criação. Abaixo segue uma tradução minha e do grande Luiz Hideki Sakaguti (que agradeço também pela revisão dos meus textos, valeu Lulão!):


Ó, Deus da Terra e do Altar

— G. K. Chesterton, 1906 —

Ó, Deus da Terra e do Altar,
curvai e escutai nosso lamento,
nossos governantes terrenos vacilam,
nosso povo definha e morre;
as paredes em ouro nos sepultam,
as espadas do escárnio se partem,
não tomai de nós vosso trovão,
mas levai nosso orgulho.

De tudo que o terror ensina,
de mentiras faladas e escritas,
de todos os discursos fáceis
que confortam homens cruéis,
da venda e profanação
da honra e da espada,
do sono e da danação,
livrai-nos, bom Senhor!

Amarrai em uma corda viva
o príncipe, o sacerdote e o escravo,
uni todas as nossas vidas,
golpeai-nos e salvai-nos todos;
em ira e exultação
inflamado com fé, e livre,
erguei uma nação viva,
uma única espada para ti.

(A parte 2 será sobre a relação entre essa música e a figura de Aleister Crowley)


 1 Goodfellow, I. The Church Socialist League 1906-1923: Origins, Development and Disintegration. Tese de doutorado. Durham, Durham University, 1983. Disponível em: http://etheses.dur.ac.uk/1208/.

 2 Jones, P. D. “Northern Radicalism: The Church Socialist League, 1906-1924”. Em: Christian Socialist Revival, 1877-1914. Pinceton, Princeton University Press, 1968, pp. 225-302.

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