Entre músicas, marchas e metais: Um passeio pela história da Fanfarra Municipal de Atibaia e do Projeto Educando com Música e Cidadania. - Ruídos Podcast

Entre músicas, marchas e metais: Um passeio pela história da Fanfarra Municipal de Atibaia e do Projeto Educando com Música e Cidadania.

Entre músicas, marchas e metais: Um passeio pela história da Fanfarra Municipal de Atibaia e do Projeto Educando com Música e Cidadania.


Flávio Rodrigues


1. A primeira marcha

1989. A cidade de Atibaia iniciava os preparativos para as comemorações de seus 324 anos sob a tutela do então recém-eleito prefeito José Aparecido Ferreira Franco, popularmente conhecido como “Cido Franco”, com o tradicional desfile cívico pelas ruas da cidade que ocorre anualmente nas proximidades do dia 24 de junho. Apaixonado por música e pelas fanfarras, segundo relatos daqueles que conviveram de perto com o então mandatário, essa era a segunda passagem de Cido pela prefeitura, tendo sido nomeado prefeito anteriormente, na época da ditadura militar, e exercido mandato entre os anos de 1975 e 1979. Naquela época, ele já havia demonstrado seu apreço pelas bandas ao sancionar a lei que estabelecia o COFABAN, o Concurso de Fanfarras e Bandas no município, em 1975, que deveria ser realizado anualmente durante os festejos do aniversário da cidade, e ao destinar diversas verbas para manutenção e compra de uniformes para a fanfarra do colégio Major Juvenal Alvim, corporação de prestígio fundada pelo então diretor Luiz Carlos de Souza Palma e por Omar Zigaib, prefeito da cidade de Atibaia entre 1971 e 1975, e que havia conquistado três títulos nacionais e três estaduais. Com a volta de Cido à prefeitura, dessa vez eleito no pleito de 1988, era natural que a passagem das bandas marciais seria, mais uma vez, um dos pontos altos da festa preparada para as solenidades de 1989. O jornal O Atibaiense de 24 de junho anunciava em suas páginas a programação do vindouro desfile:


Neste dia 24, Festa da Cidade, às 9,00 hs, no Paço Municipal, será realizado o Hasteamento das Bandeiras com a presença de autoridades, público, escolares.

[…]

Segundo informes do prof. Sidney C. Malmegrin, assessor do Departamento de Esportes e Turismo da Prefeitura local, estarão abrilhantando o desfile, nada menos que seis fanfarras originárias da capital e cidades vizinhas, uma Banda Marcial e a Corporação Musical 14 de Outubro de Atibaia.

A CBPO (Companhia Brasileira de Projetos e Obras) está patrocinando a vinda da Banda Marcial e das Fanfarras. (O Atibaiense, 1989a)¹


Realizado o evento, na Rua Tomé Franco, a repercussão não poderia ser mais positiva. Na edição de 27 de junho de 1989, o jornal O Atibaiense não poupou elogios ao desfile, exaltando a passagem das bandas. Participaram deste evento as fanfarras do Instituto Mairiporã, Monteiro Lobato de Pirituba, Centenário da Casa Verde, Frei Antônio Santana Galvão de Guarulhos, Municipal de Piracaia e Walter Weiszflog de Caieiras (O Atibaiense, 1989b). Com manchetes como “Desfile comemorou os 324 anos com aula de civismo”, “O povão compareceu em massa” e, ainda, “Desfile de 24 de junho foi um sucesso”, a empolgação do público presente ficou evidente:


No último sábado, 24 de junho, Atibaia comemorou seus 324 anos de vida e reviveu os “bons tempos” dos desfiles. Foi uma autêntica aula de civismo, como comentaram muitos dos que assistiram o desfile. As ruas da cidade ficaram lotadas durante o desfile, que começou às 10 horas e se encerrou em torno das 14 horas. (O Atibaiense, 1989b)


No palanque, as autoridades de Atibaia, Bragança Paulista, Piracaia, Bom Jesus dos Perdões, Nazaré Paulista, vereadores e outros especialmente convidados aplaudiram as escolas que passagem ou mesmo as exibições das Bandas e Fanfarras, que deram um brilho todo especial a esse desfile.

Muitos presentes ao desfile elogiavam o prefeito José Aparecido Ferreira Franco por ter despertado o civismo, até então esquecido por todos. Teve um que emocionado dizia: “Isso é muito bonito, justamente quando estamos no meio de tanta corrupção, pouca vergonha, de tudo que acontece em nossa volta. Hoje estamos revivendo um passado que ficou muito distante de nós, mas graças a Deus ele hoje está sendo revivido”. (O Atibaiense, 1989b)


O sucesso da passagem das bandas pelas ruas da cidade foi tão promissor e animador que o então prefeito, ainda no palanque e tomado pela emoção e beleza do desfile, teria prometido aos munícipes da cidade que Atibaia possuiria, em breve, a sua própria fanfarra municipal e convidou o maestro Reginaldo Ângelo Ferreira para tomar a frente desta empreitada (O Atibaiense, 2000). Segundo Eliana Zimbres Silva:


1989 foi o ano em que o prefeito pensou em criar a fanfarra pra cidade porque ele estava percebendo que era uma forma de divulgar o município. Ele era muito apaixonado por bandas. […] Tinham algumas outras bandas que viam pra cidade na época que faziam o desfile cívico de 24 de junho e Atibaia não tinha. Atibaia não tinha uma fanfarra que a representasse.


Funcionária da Prefeitura de Atibaia desde 1985, Eliana acompanhou de perto todo o processo de criação da fanfarra municipal, desde a ideia inicial em 1989, quando ocupava o cargo de Diretora de Esportes e Turismo no município, até os dias de hoje, mais de 35 anos depois, onde ela continua como “madrinha” do conjunto e servidora pública no cargo de Assistente Especial de Serviços de Gestão. Ao lado do também diretor, Sidney Cotrim Malmegrim, eles foram, dentro da prefeitura, os grandes idealizadores da vindoura fanfarra municipal. Mesmo com a criação do Departamento de Cultura como parte integrante da Secretaria de Educação e Cultura, primeiro órgão gestor especificamente voltado à cultura no município, em 1990 (Costa; Zago, 2023), os dois se mantiveram à frente do projeto.

Mas quem vê o sucesso do conjunto ao longo de todos estes anos não imagina que o início deste caminho não foi fácil. Mesmo com a promessa e apoio do então prefeito, as verbas destinadas pela Secretaria de Turismo eram escassas e os grandes patrocínios não eram uma possibilidade para uma banda que não tinha nem mesmo feito sua estreia. Segundo Malmegrim, em entrevista ao jornal O Atibaiense de 28 de novembro de 2015: “Era um tempo romântico, em que tudo era feito por amor e com muito esforço. O surgimento da FAMA aconteceu graças ao sonho de idealistas e voluntários, pessoas apaixonadas pela causa cívica e amor à cidade” (Malmegrim apud O Atibaiense, 2015).

Um destes idealistas é José Gilberto Costa, o Mussum, membro folclórico do grupo de Atibaia. Antigo integrante da fanfarra do colégio José Alvim, onde tocava percussão, ainda nos anos 1960, ele também integrou, alguns anos depois, a premiada fanfarra do colégio Major Juvenal Alvim, desta vez tocando o cornetão. Mussum revela, em entrevista, uma conversa anterior de bastidores entre ele, o maestro Reginaldo Ângelo Ferreira e o prefeito Cido Franco. Vizinhos e grandes amigos desde o tempo da fanfarra do José Alvim, onde Reginaldo foi regente, Mussum e Reginaldo discutiam a possibilidade de uma reativação das fanfarras da cidade, e procuraram o então mandatário para uma conversa: “Ele [Cido Franco] amava a fanfarra do Major! Inclusive, o Cido Franco, ele morava do lado do [colégio] Major […]. Ele cedia a casa dele pro pessoal [da fanfarra] tomar água, usar o banheiro”, conta. A conversa aconteceu de maneira muito amistosa, já que Cido já conhecia Reginaldo pelo trabalho nas fanfarras e também por seu ofício na Companhia Têxtil Brasileira. A aceitação da ideia por parte do prefeito foi imediata, o que surpreendeu aos dois. Cido teria pedido a Mussum e Reginaldo uma lista dos instrumentos que eles precisariam para iniciar o trabalho. Os dois então elaboraram, no mesmo momento, uma relação com um instrumental modesto para ser o ponto de partida da iniciativa. A reação de Cido não foi a esperada por Mussum: “Ele pegou a lista, olhou e falou: ‘vocês estão de brincadeira comigo, né?’ Aí eu falei [para o Reginaldo] ‘ih, acho que ele achou caro, a gente colocou muita coisa, né?’”. Para surpresa de Mussum, o problema não era esse. O prefeito teria respondido: Não, não é nada disso aí, eu quero um negócio que chegue, assim, arrasando, quebrando tudo! Aquele negócio bonito, igual à fanfarra do Major tinha”.



Figura 1. Ensaio da fanfarra na casa do prefeito Cido Franco em 1991. Arquivo pessoal de Felipe Ibraim Ferreira.

Descrição: em um cruzamento asfaltado estão diversas pessoas em marcha. À frente, com o braço direito erguido, se encontra o maestro Reginaldo Ângelo Ferreira, de camisa branca por dentro de uma calça cinza e calçado marrom. À direita é possível ver parte de uma vegetação pertencente a uma praça e um sinal de trânsito. Ao fundo, a casa do prefeito Cido Franco, com os portões abertos, com o mesmo observando a passagem dos membros da fanfarra ao lado de outras pessoas, e uma grande parede cinza.


A partir do sinal verde recebido, foi dado início então a uma força-tarefa para encontrar e recrutar membros e dar forma a este novo conjunto. Foram contatados integrantes das três antigas fanfarras escolares de Atibaia: do colégio José Alvim, do colégio Major Juvenal Alvim e da Escola de Comércio. Além disto, os jornais da cidade foram também mobilizados para a empreitada, como revela uma nota publicada pelo jornal O Atibaiense de dezembro de 1990:


Dia 8 de dezembro no Ginásio de Esportes Elefantão serão iniciados os trabalhos referentes a organização da Fanfarra local.

As inscrições já podem ser feitas na avenida Nova de Julho, 322 – 3o andar – sala 36.

Organizar essa fanfarra é um desejo do prefeito José Aparecido Ferreira Franco e da Secretaria de Esportes e Turismo da Prefeitura de Atibaia.

A luta também é nossa, é de todos.

Resta você querer participar e ir se inscrever. (O Atibaiense, 1990)



Figura 2. Nota no jornal O Atibaiense de dezembro de 1990.


Descrição: excerto do jornal O Atibaiense. Conteúdo descrito acima.


O recrutamento surtiu efeito e, ainda em dezembro de 1990, foi fundada oficialmente a Fanfarra Municipal de Atibaia, sob regência do maestro Reginaldo Ângelo Ferreira com o auxílio de Jeferson Milton Rosa, o “Seu Bastião”. O maestro Reginaldo relembra este rápido crescimento: “Lembro que levei a fanfarra, pra tocar marcha batida na frente da Prefeitura, só com trinta elementos. Era uma brincadeira. Depois, no desfile mesmo, mostramos uma centena de componentes, agradando o prefeito Cido” (Ferreira apud O Atibaiense, 2000).

Os ensaios da fanfarra passaram a acontecer a partir de março de 1991, duas vezes por semana, em um espaço cedido dentro da Companhia Têxtil de Atibaia, antigo local de trabalho do maestro Reginaldo que, além de regente, dividiu o tempo de sua rotina com a profissão de contador na mesma companhia e, a partir deste contato, havia se tornado responsável por tomar conta dos galpões da então desativada fábrica.

Muitos dos instrumentos adquiridos no início da banda foram cedidos pela escola Major Juvenal Alvim, que havia desativado sua fanfarra em meados dos anos 1970. Os instrumentos foram recuperados com os recursos escassos que a prefeitura dispunha e outros instrumentos eram trazidos pelos próprios músicos para o ensaio e alguns ainda eram emprestados de diferentes municípios da região. Já o fardamento foi adquirido pela prefeitura apenas dois meses antes da estreia do conjunto, segundo relatos da época. Neste primeiro momento, a fanfarra possuía o instrumental de metal com apenas um pisto, considerados intermediários entre os instrumentos simples ou lisos, que compreendem as cornetas, e os instrumentos cromáticos, como trompetes, trombones, entre outros, extremamente caros e inacessíveis na época. Os poucos instrumentos de vários pistos que eram conseguidos pelo grupo passavam então por uma adaptação para poderem se enquadrar na categoria, com seus pistos sobressalentes sendo cortados para torná-los instrumentos de apenas um pisto (Ferreira, Us Podcast, 2022).

Os primeiros ensaios da FAMA eram bastante diferentes do processo de bandas atuais. O maestro Reginaldo não possuía domínio de aspectos formais da música, e costumava conduzir o grupo através da orientação da posição dos pistos dos instrumentos de metal. Com a mão levantada em relação ao braço ou abaixada, ele indicava a posição necessária do pisto para que a melodia pudesse soar como deveria. Como relembra seu filho, Felipe:


Meu pai não sabia nada de música, era tudo de ouvido. Então ele não tinha noção nenhuma. […] Então ele não sabia nota, ele só sabia direcionar melodias, tudo de ouvido. Então ele ia pros campeonatos, gravava tudo e curtia em casa, ficava ouvindo em casa, e só de ouvido ele conseguia tirar essas coisas pra passar pra galera. (Ferreira, Us Podcast, 2022)


Durante os ensaios, o maestro Reginaldo buscava orientar os integrantes menos experientes sobre o repertório e, num segundo momento, havia de fato o ensaio geral onde todos se juntavam (Chinaglia, Us Podcast, 2022). Outros membros mais experientes ajudavam na condução dos mais jovens e, com muito trabalho auditivo, as peças eram passadas e ensaiadas por todos. Nem todos músicos eram familiarizados com a escrita musical e a leitura da partitura neste primeiro momento. Por isto, muito do trabalho era feito por meio de imitação. Com apenas pouco mais de três meses de ensaio, a fanfarra já tinha seu primeiro compromisso: o Desfile Cívico em comemoração aos 326 anos da cidade de Atibaia, em junho de 1991. A empolgação pela estreia do conjunto era grande. Segundo o Jornal de Atibaia de 22 de junho daquele ano:


O grandioso desfile deste domingo, 23, marcará com destaque o aspecto cívico das comemorações do 326o aniversário de fundação de nossa cidade. E um acontecimento auspicioso avivará mais ainda essa festa: a apresentação de nossa fanfarra municipal. Seus integrantes estarão sob o comando do professor Reginaldo, participando da solenidade de hasteamento dos pavilhões às 8 horas, junto à Prefeitura Municipal, em marcha batida. Encerrará o desfile cívico e, certamente, arrancará muitos aplausos da comunidade, agradecida por contar novamente com sua fanfarra nos acontecimentos festivos.

A Fanfarra Municipal de Atibaia iniciou os ensaios após o trabalho inicial de estruturação, em 6 de março, sob a direção eficiente de Reginaldo Angelo Ferreira, coadjuvado por Jefferson Milton Rosa e contando com a decidida colaboração do secretário municipal de Esportes e Turismo, professor Sidney Cotrim Malmegrim e da assessora Eliana Zimbres Silva. A bagagem de Reginaldo dispensa maiores comentários. Formou fanfarras em estabelecimentos escolares de Bom Jesus dos Perdões, Socorro, Bragança Paulista, Extrema (em Minas Gerais) e atualmente cuida, também, da fanfarra do vizinho município de Piracaia. São 95 integrantes que estarão participando das solenidades e do desfile, iniciando oficialmente suas atividades ao lado das fanfarras da EEPG Rogério Levorin, de Francisco Morato; Monteiro Lobato, de Pirituba; Municipal de Piracaia; Colégio Progresso, da Capital; Colégio Desenvolvimento (Capital); Colégio Nossa Senhora Consolata (Capital); Águia Independente, de Montemor; Banda Marcial Município de Mauá e Banda Marcial do Colégio João XXIII, da Capital. (Jornal de Atibaia, 1991)



Figura 3. Matéria no Jornal de Atibaia de 22 de junho de 1991.


Descrição: Excerto do Jornal de Atibaia de 22 de junho de 1991. Acima da matéria, o título “Saudamos nossa fanfarra” seguida por uma foto que exibe várias pessoas, em marcha, empunhando instrumentos de metal junto aos lábios. Foto em preto e branco. Abaixo, o texto da matéria, que teve seu conteúdo descrito acima.


Após a apresentação, mais uma vez, a fanfarra teve sua participação exaltada. O jornal O Atibaiense, em nota batizada de “E a nossa Fanfarra chegou”, de junho de 1991, escreveu:


Trazendo as cores da cidade na roupa, fez sua apresentação oficial dia 23 de junho no Paço Municipal, a Fanfarra Municipal de Atibaia.

Naquele instante era apenas uma representação, do seu todo. Chegou na solenidade cívica para executar a marcha batida durante o hasteamento das bandeiras.

Seus componentes nervosos e o público emocionado. O Reginaldo com voz de comando e a fidelidade de acompanhamento do Jeferson.

Um sonho idealizado pelo prefeito José Aparecido Ferreira Franco, agora realizado.

Muito trabalho em pouco tempo

É uma Fanfarra Simples, com 1 pisto.

São 105 componentes, considerando instrumentistas, a comissão de frente e balizas, e a comissão de apoio.

É um grupo integrado de novos e remanescentes membros de outras fanfarras. Três meses de apronto, um tempo recorde para o brilhantismo conseguido.

Muita emoção

Intensamente aplaudida, do início ao fim da Tomé Franco, fez a apoteose do desfile dia 23 de junho.

Diante do palanque oficial os membros da fanfarra já organizados em comissão homenagearam ao prefeito José Aparecido, ao vice prefeito Takao Ono, ao prof. Sidney Cotrim com uma placa de prata. Foram os idealizadores e incentivadores. Eliana Zimbres Silva, a madrinha do grupo também acarinhada pelos componentes recebeu flores. (O Atibaiense, 1991)


Em depoimento ao mesmo jornal, em novembro de 2015, o ex-diretor Sidney Malmegrim declarou, sobre esta primeira apresentação:


Lembro das lágrimas no rosto das pessoas, dos dois lados da calçada [da Rua Tomé Franco, onde acontecia o desfile cívico de aniversário da cidade], todas emocionadas com a apresentação da fanfarra. Foi um momento marcante para todos que estavam ali. (Malmegrim apud O Atibaiense, 2015)



Figura 4. Apresentação da FAMA em 1991. Arquivo pessoal de Felipe Ibraim Ferreira.


Descrição: diversos membros da FAMA, fardados com farda branca com detalhes dourados nos ombros e vermelho nos punhos e quepes preto, dourado e branco, marcham pelas ruas do município de Atibaia. Ao fundo, pode-se ver casas do centro da cidade.


Nós fomos muito bem recebidos na avenida, o pessoal chorava, tinham muitos chorando. E aí o Cido Franco [disse]: ‘esse é o meu presente pra cidade de Atibaia!’” conta Mussum, também relembrando a estreia. Ele também recorda que o dia da primeira marcha foi marcado por muita chuva, mas que, mesmo assim, o pessoal “não arredou o pé” e lotou a avenida. Fato curioso é que as primeiras aparições da FAMA, segundo o próprio Mussum, sempre foram debaixo de chuva: “Toda vez que nós íamos tocar, chovia! Nós somos a banda que chama chuva”, conta, com bom humor.



Figura 5. Apresentação da FAMA em 1991 debaixo de chuva. Arquivo pessoal de Felipe Ibraim Ferreira.


Descrição: membros da fanfarra de Atibaia, em formação de semi-círculo, estão posicionados em uma rua do centro da cidade de Atibaia. Ao centro, um garoto. As fardas são brancas, com detalhes dourados e vermelhos, usam quepes preto, dourado e branco, calças pretas e calçados brancos. Se encontram em posição de “sentido”, com os braços ao longo do corpo. Ao fundo, pode-se ver casas e comércios da cidade, postes de energia e partes de algumas árvores. Do lado esquerdo é possível ver pessoas que acompanham o desfile com plásticos sobre a cabeça, se protegendo da chuva. O asfalto do chão também está molhado.


Era dado então o pontapé inicial de uma história brilhante de conquistas e da formação de um conjunto musical que impactaria diversas crianças, jovens e adultos do município de Atibaia até os dias de hoje, faça chuva ou sol. O sonho do então prefeito Cido Franco, mesmo muitos anos após sua morte, segue vivo, encantando plateias por todo o mundo e revelando a todos diversos personagens de destaque que ajudam esta história a continuar sendo construída.


2. Maestros

2.1. O primeiro maestro: Reginaldo Ângelo Ferreira

Nascido em Atibaia em 06 de abril de 1954, Reginaldo Ângelo Ferreira cresceu ao lado da icônica Companhia Têxtil Brasileira (CTB). Fundada em 1911 pelos sócios Major Juvenal Alvim, Benedito de Almeida Bueno, Francisco Aguiar Peçanha, Francisco Pires de Camargo e Olegário Barreto com o nome de Fábrica de Tecido São João, a companhia instalada na Rua José Bim, com 15.100m² de área construída, chegou a empregar, durante as décadas de 1930 e 1940, aproximadamente 80% da população de Atibaia (Conti, 2001; Corredor Dom Pedro, [s.d.]). Um destes empregados era o senhor Pedro Ferreira, pai de Reginaldo, que trabalhou no local durante 48 anos. A partir deste contato familiar, com apenas 12 anos, Reginaldo iniciou os trabalhos como contador na fábrica, profissão que exerceria por anos a fio.

O contato com a música, no entanto, veio ainda mais cedo: através da fanfarra da recém-implementada Escola de Comércio, fundada na cidade pelos professores João Pereira Dias e José Xavier da Costa Lana, em 1951, na Avenida Nove de Julho. A Escola de Comércio abrigou a primeira faculdade de Atibaia, mas também oferecia cursos de magistério, colegial e ensino básico (Conti, 2001). Na fanfarra da escola, Reginaldo foi introduzido à corneta, com apenas 8 anos de idade. Informações do jornal A Folha, de 08 de junho de 2001, apontam que Reginaldo teria tido também lições de música com o renomado maestro Frederico Suppione, regente da Corporação 24 de Outubro. Italiano radicado em Bragança Paulista, Suppione se tornou um dos célebres maestros de Atibaia no século XX, tendo se mudado para cidade em 1938, se tornando regente da extinta Banda 1º de Março que, posteriormente, se uniu à Corporação 24 de Outubro, se tornando uma das mais importantes bandas musicais da cidade de Atibaia e a única das chamadas “Primeiras Bandas de Música” do município ativas até os dias de hoje (Nery, 2008).

Enquanto mantinha seu trabalho na CTB, o que lhe garantia um amplo contato com muitas pessoas de Atibaia e região, inclusive chegando a conhecer o futuro prefeito Cido Franco ainda em sua passagem pela companhia, a paixão pela música e seu encanto pelos grupos fez com que Reginaldo nunca deixasse de tocar e, naturalmente, passou também a reger os grupos em que atuava, como a própria fanfarra da Escola de Comércio e a fanfarra do colégio José Alvim, ainda no final da década de 1960, sendo também convidado para criar conjuntos em outras cidades da região, dado seu tato para liderar as bandas e a boa fama das fanfarras de Atibaia, que projetou seu nome. No entanto, como citado anteriormente, o maestro possuía pouco domínio dos aspectos teóricos da música, sendo todo seu conhecimento empírico e muito baseado nas posições dos pistos dos instrumentos, tendo frequentado apenas alguns cursos livres esporádicos de harmonia, regência e coral na UNESP durante os anos 1980 e estudos de regência em Goiânia e Brasília já nos anos 1990. Este fato, inclusive, foi motivo de divisão entre as bandas e fanfarras da cidade nas décadas anteriores: enquanto as bandas tinham prestígio e músicos com conhecimentos formais, as fanfarras eram vistas, por suas limitações instrumentais e conhecimento estritamente empírico, como bandas de baixa qualidade (Rodrigues, 2024). Não à toa, diversos outros regentes e músicos viriam a auxiliar o maestro Reginaldo no início de seu trabalho na FAMA, como veremos a seguir.



Figura 6. Maestro Reginaldo Ângelo Ferreira em apresentação ocorrida em 1997. Arquivo pessoal de Felipe Ibraim Ferreira.


Descrição: ao centro, o maestro Reginaldo Ângelo Ferreira. Está vestido um terno cinza, com gravata cinza, calça social cinza e camisa azul. O maestro tem cabelo curto e barba, e se encontra com as duas mãos para a frente, em posição de regência. Ao fundo, é possível ver diversas pessoas acompanhando a apresentação, além de parte de vegetação. À esquerda e à frente do maestro, em primeiro plano, é possível ver bandeiras vermelhas com o escrito “FAMA”, assim como alguns instrumentos de metal e membros fardados com uma farda preta com detalhes dourados e vermelhos.


Com o passar dos anos, Reginaldo passou também a participar de maneira ativa na organização de campeonatos e concursos e na promoção e difusão da cultura das fanfarras no país. Um de seus maiores feitos foi organizar o maior campeonato de bandas do Brasil até então, o COFABAN de Brangaça Paulista, durante a década de 1980. Na ocasião, foram reunidas 72 corporações de 10 estados brasileiros. Para atingir tal feito, Reginaldo chegou a ir pessoalmente convidar algumas das bandas para o concurso. Além disso, o amigo Mussum, braço direito do maestro, conta que, além da busca ativa de participantes, eles se encarregavam de ir até São Paulo buscar comidas regionais solicitadas pelos músicos para que estes se sentissem bem recebidos. Felipe, filho do maestro, conta:


O maior concurso do Brasil era o de Bragança. […] Chegou ao ponto de ele ir de avião lá para o nordeste fazer o contato com as bandas de lá e trazia as bandas de lá pra cá. Foi um marco na história das bandas. Era um concurso que começava sexta e ia até domingo à noite. Eu lembro dele falar que ele dividia a cidade em quatro. […] Era um concurso bem legal.


No aspecto organizacional, o “Lula”, apelido que Reginaldo ganhou pela sua semelhança física com o sindicalista que se tornaria candidato à presidência da república, esteve presente na criação da Confederação Nacional de Bandas e Fanfarras (CNBF), no auditório da sede de campo da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, em Brasília, em 30 de setembro de 1995 (Confederação Nacional de Bandas e Fanfarras, [s.d.]). Além disso, chegou a exercer cargos de 2º Secretário da Federação Paulista de Bandas em Fanfarras e de 2º Tesoureiro da CNBF (A Folha, 2001). No entanto, diferentemente do sósia político, Reginaldo não se interessava tanto pelos aspectos organizacionais e seu envolvimento nas chapas eram protocolares.



Figura 7. Maestro Reginaldo Ângelo Ferreira. Arquivo pessoal de Felipe Ibraim Ferreira.


Descrição: ao centro, de perfil, o maestro Reginaldo Ângelo Ferreira, de terno marrom, segura uma batuta com a mão direita e mantém a esquerda também erguida. Ele é um homem caucasiano, cabelos pretos curtos, barba também preta. À esquerda, duas senhoras assistem e aplaudem. À direita, veem-se alguns instrumentos de metal e alguns membros da fanfarra, com fardas brancas e detalhes vermelhos. Ao fundo, uma parede e imagens religiosas.


Infelizmente, a bela trajetória de Reginaldo começou a ser prejudicada por problemas de saúde, que começaram a se manifestar a partir de 1996. Nesse ano, o maestro começou a apresentar desmaios, problemas de pressão e dificuldades cognitivas e teve que reduzir o ritmo de trabalho. Na época, ele já era auxiliado à frente da FAMA pelos irmãos Rogério e Wagner Brito e pelo filho, Felipe Ibraim Ferreira.

Em 1998, Reginaldo viu a Fanfarra de Atibaia receber um dos primeiros reconhecimentos institucionais de seu sucesso, com a proposta de criação do “Dia da Fanfarra de Atibaia”, pelo vereador Domingos Gerage. A lei nº 2901 de 10 de julho de 1998 instituía o dia 8 de dezembro como data para a comemoração, dia em que oficialmente foram iniciados os trabalhos de organização da FAMA, em 1990. A lei, no entanto, aprovada pelo então prefeito Marco Vinício Silveira, foi revogada ainda no mesmo ano.

Já em 2000, mesmo afastado de algumas funções do conjunto, a doença não o impediu o maestro Reginaldo de concretizar um último grande projeto: a criação da fanfarra da APAE. A matéria veiculada pelo Correio de Atibaia de julho do mesmo ano conta um pouco desta bonita história:


Olhar atento para os comandos. Passos sincronizados.

O ritmo é determinado pela vontade de acertar. A música ganha seu sentido mais nobre. Os instrumentos, ao serem manipulados por mãos que precisam de estímulo e esperança, passam a ser mensageiros de uma boa nova.

Assistir ao desfile da fanfarra formada pelos alunos da Apae é estar frente a frente com a determinação, a coragem e a vontade de vencer os próprios limites. Para eles, a oportunidade de estar ali, desfilando, significa muito mais que um desafios. É a pura demonstração para a sociedade de que a integração é possível.

A fanfarra da Apae foi o grande desfile cívico no aniversário da cidade. A concentração dos alunos emocionou o público, que pode admirar o trabalho de um homem que marcou se trabalho em Atibaia com humildade.

O maestro Reginaldo Ferreira começou o trabalho com os alunos da Apae há três meses. Responsável por vários títulos da Fanfarra de Atibaia, o maestro achou que podia fazer mais pela cidade. Quando foi convidado a fazer parte da diretoria da entidade, Reginaldo colocou uma nova missão na sua carreira: formar uma fanfarra com os alunos da Apae.

O que parecia difícil passou rapidamente a ser sonho realizado. Cerca de 30 crianças da entidade participam da iniciativa. Entre eles está Roni, de 16 anos, que frequenta a Apae desde os 7 anos de idade. Com um sorriso estampado no rosto ele responde às lágrimas emocionadas da mãe, Rosana Aparecida Queiroz. “Estou orgulhosa. Muitas vezes me encontrei sem esperança. Achando que ele não ia aprender nada na vida, mas hoje eu sei que ele ainda vai me dar muitas surpresas boas”, disse emocionada.

A satisfação também passa pelas professoras, pelos funcionários da entidade e ainda é maior para o próprio maestro. “Já trabalhei com muitas fanfarras, em outros municípios mas nunca tive um retorno tão positivo e gratificante”, declara Reginaldo. Segundo o maestro, lidar com os alunos da Apae também é um aprendizado de vida. “É muito importante saber como eles encaram os desafios de forma determinada. O simples fato de gostarem de música já servia de estímulo. Isso é uma lição para nós, ditos normais”, continua.

O maestro dá aulas na entidade duas vezes por semana durante uma hora. Os instrumentos foram doados pela Prefeitura e empresas da cidade. A diretora pedagógica da Apae, Marlene da Cunha Lobo, acredita que os alunos que participam da iniciativa estão desenvolvendo a coordenação motora o ritmo e o equilíbrio. “Eles desenvolvem seus potenciais sem que percebam”, declara.

Para o aluno Eduardo Jesus, fazer parte da fanfarra é legal. “Agora vou aprender a tocar corneta”, faz questão de acrescentar.

Corneta, bumbo, prato. O som parece imitar as pulsações do coração, da vida. E disso, eles entendem muito bem. São maestros em viver cada desafio com a certeza de mestres. (Leclerc, 2000)



Figura 8. Fanfarra da APAE. Jornal Coreio de Atibaia de 8 de julho de 2000. Foto: Adriana Leclerc.


Descrição: à esquerda, de perfil, o maestro Reginaldo, vestindo um terno e calça cinza observa os membros da fanfarra, à direita da foto. Em primeiro plano há um rapaz, vestido camiseta cinza e calça escura, com detalhes na lateral, carregando um grande instrumento de percussão com correias. Ao fundo, veem-se outros músicos com instrumentos de percussão e, ainda, um muro, parte de carros estacionados e vegetação.


Os anos de trabalho e dedicação do maestro Reginaldo foram reconhecidos ainda em vida pela Câmara Municipal de Atibaia com a entrega, em 2001, do título de “Cidadão Benemérito”. O autor da congratulação foi o vereador Toninho Almendra, e a sessão de entrega aconteceu no dia 7 de junho, e foi acompanhada pelo então prefeito Beto Trícoli, seu vice, Mário Inui, pelo juiz diretor do fórum, Romeu Estevão Ramos, e pelo prefeito de Bom Jesus dos Perdões, Paulo Afonso Ferreira Bueno, além de seus familiares e amigos. Na ocasião, o vereador Almendra declarou: “Trata-se de uma vida inteira dedicada à música, que integra cidadãos, desenvolve o amor às artes e ainda leva o nome de Atibaia aos diversos cantos do país” (Almendra apud Gazeta Bragantina, 2001). Transcrevemos aqui o discurso feito por Reginaldo na ocasião, guardado até os dias de hoje pela madrinha da FAMA, Eliana Zimbres Silva:


O destino não é uma questão de sorte. É uma questão de escolha. Não é algo que se espera, mas algo a alcançar

Para mim, estas palavras, de um autor que viveu no século passado, definem muito bem a minha vida. Por uma questão de escolha, decidi ficar ao lado das crianças e jovens, lutando pela sua formação, principalmente na área musical. A música é uma chance de redenção, de descoberta de valores como o companheirismo, a solidariedade, o talento.

Deus nos deu a vida, mas também nos deu o livre arbítrio, o direito de escolher. É dessa forma que construímos nosso destino, contando sempre com a ajuda dos cidadãos conscientes, de políticos preocupados realmente o povo, dos pais que sonham um futuro melhor para seus filhos.

Para preencher essa necessidade comunitária, tive a oportunidade de iniciar o trabalho na Fanfarra Municipal de Atibaia graças à sensibilidade e ao sentido publico do então prefeito, dr. José Aparecido Ferreira Franco.

Essa porta abriu-se há 10 anos. Ao longo dessa década, preparamos muitas crianças e jovens, aguçamos sua criatividade, elaboramos repertórios, buscamos melhores instrumentos e uniformes, fizemos apresentações em diversas cidades, participamos de vários campeonatos de bandas e fanfarras e colecionamos troféus, que hoje forram as paredes da sede da Fanfarra, na rua Albertina Mieli Pires.

Quantos momentos vivemos nestes anos! Com a vontade de Deus, o apoio das administrações municipais, dos colegas maestros, dos pais, dos componentes da Fanfarra, dos monitores e de minha família, pudemos concretizar nosso ideal. Hoje, vejo meu filho Felipe dar sequência a esse trabalho, assumindo a direção musical de novas corporações.

Para mim, está claro que o sucesso não depende de uma só pessoa, por maior peso que nossos ombros aguentem. O sucesso depende de atitudes e resoluções, de empenho e dedicação. Depende de todos e de acreditar sempre que nossos jovens podem se desenvolver como cidadãos equilibrados e participantes, longe dos perigos da rua.

Agradeço aos vereadores desta Casa, representados pelo presidente José Bernardo Denig, por esse honroso reconhecimento, que divido com todas as pessoas que citei. Mias que a minha pessoa, os senhores estão aprovando publicamente um trabalho de equipe, coletivo, harmonioso.

O Cidadão Benemérito é aquele que constrói o seu sonho, pedra por pedra, dia a dia, no estrito cumprimento do dever e de sua responsabilidade social. Sempre quis que essa fosse a minha trilha certa, o meu caminho. Se o segui, sem tantas falhas que o prejudicasse, foi porque as dificuldades não me fizeram desistir, as críticas me impulsionaram e nunca perdi a crença no potencial criativo de nossa juventude.

Vamos continuar acreditando que é possível sonhar e realizar.

A todos, o meu muito obrigado.

Reginaldo Ferreira


Entre dobrados, marchas, peças eruditas e populares, em seus primeiros 10 anos de existência, Reginaldo conduziu a FAMA nas programações de aniversário das cidades de Nova Resende, Porto Feliz, Cosmópolis, Piracaia, Nazaré Paulista, Monte Alto, Jarinu, Camanducaia, Bueno Brandão, Joanópolis, São Caetano do Sul, Monte Alegre do Sul, Jaguariúna, Bom Jesus dos Perdões, Espírito Santo do Pinhal, São José dos Campos, Osasco, Serra Negra, Campo Limpo Paulista, Cordeirópolis e Pedreira, além de presença garantida nas festas de aniversário de Atibaia e das comemorações de Sete de Setembro. A fanfarra também fez participação na novela “Ana Raio e Zé Trovão”, da extinta TV Manchete, e nas homenagens de sepultamento do prefeito José Aparecido Ferreira Franco, do maestro Frederico Suppione e do cantor Sílvio Caldas. O conjunto gravou ainda dois álbuns e venceu 19 títulos, sendo o primeiro já em 1992 (O Atibaiense, 2000).

Reginaldo, infelizmente, teve sua trajetória encurtada pelo agravamento da doença. Em meados do ano de 2002, ele foi afastado definitivamente de suas funções na fanfarra. Tudo indica que o maestro tenha sofrido uma doença neurológica em seus últimos anos que o deixou bastante debilitado até seu falecimento, em 27 de dezembro do mesmo ano, por conta de um derrame, com apenas 48 anos de idade. O maestro deixou sua companheira, Elzira Duarte Ibraim Ferreira, com quem se casou em 1977, e dois filhos, Felipe e Érica. O primeiro reconhecimento póstumo que recebeu aconteceu em 2004 pela Prefeitura Municipal da cidade de Bom Jesus dos Perdões, que batizou, através da aprovação da lei nº 1757 de 29 de novembro, a escola municipal localizada na Rodovia D. Pedro I, Km 64,5, no bairro do Jardim Santa Maria, como “Escola Municipal Maestro Reginaldo Ângelo Ferreira”. A lei foi sancionada pelo prefeito Paulo Afonso Ferreira Bueno. Já no ano de 2013 foi a vez de Atibaia prestar mais uma homenagem com a denominação do local de ensaios da FAMA e das aulas do Projeto Educando com Música e Cidadania como “Centro Cultural Reginaldo Ângelo Ferreira”, através da lei nº 4192, de 29 de novembro de 2013, sancionada pelo prefeito Saulo Pedroso de Souza.

Amigo que acompanhou toda a trajetória do maestro, Mussum relembra com carinho do parceiro: “O Reginaldo era uma pessoa muito boa. Ele tirava da casa dele pra colocar na fanfarra. A fanfarra aqui, ele deu a vida dele pela fanfarra. […] Ele sempre correu atrás pra ajudar as pessoas. Ele era um paizão”. Embora sua história tenha sido interrompida, seus ensinamentos ecoam até hoje na música produzida pela Fanfarra Municipal de Atibaia e em tantas outras bandas em que deixou um imenso legado.


2.2. Conduzindo uma história vencedora: os demais maestros da FAMA

A construção da trajetória da Fanfarra Municipal de Atibaia, embora tenha Reginaldo como um grande e importante personagem, se consolidou a partir do auxílio de outros maestros, músicos, professores e ensaiadores que, ao longo destes mais de 30 anos de existência, emprestaram ao conjunto suas experiências e vivências musicais. Uma fanfarra bem estruturada como a de Atibaia e de grande prestígio atraiu grandes músicos à cidade, representando um salto de qualidade no trabalho do conjunto. Aqui, relembraremos alguns destes personagens até chegarmos aos dias de hoje e aos seus maestros atuais.


2.2.1. Lincoln Coelho

O convite ao maestro Lincoln Coelho representou a primeira tentativa da fanfarra de Atibaia de dar um salto de qualidade musical do grupo que, com as dificuldades musicais já citadas do maestro Reginaldo, se via presa ao repertório antigo praticado nas escolas e a músicas tiradas de ouvido pelo regente. Infelizmente, não foi possível obter muitos registros da passagem do maestro Lincoln pela FAMA, que atuou no conjunto entre os anos de 1991 e 1992. Baseado em depoimento de membros da época, sabe-se que Lincoln foi integrante da renomada fanfarra do Colégio Técnico Paralelo, de São Paulo, comandada pelo maestro Domingos Sacco. Caracterizada como uma fanfarra de um pisto entre 1970 até 1987, a fanfarra do Colégio Paralelo era considera uma das mais importantes do país e a primeira corporação “show”, voltada a criação e execução de espetáculos, se desvinculando de seu caráter de toques militares e eventos cívicos.

Além da passagem pela fanfarra paulistana, Lincoln também teria atuado na cidade de Bragança Paulista, junto da FANFACALI, a Fanfarra Casper Líbero. Foi lá que conheceu o maestro Reginaldo Ângelo Ferreira e recebeu o convite para auxiliá-lo na Fanfarra Municipal de Atibaia. Embora tenha tido um início promissor, ainda segundo relatos, logo o maestro passou por alguns problemas junto ao grupo e decidiu retornar à capital paulista, abrindo espaço para outros colaboradores.


2.2.2. Celso Salgado

Celso Salgado é um dos nomes mais respeitados do cenário atual da música atibaiana. O maestro realizou um trabalho de aprimoramento musical com o FAMA entre os anos de 1993 e 1995. Segundo Felipe Ibraim Ferreira:


O Celso Salgado foi um dos caras mais importantes na história da FAMA e muitas pessoas não sabem. Ele foi o cara que sentou com todo mundo, fez todo mundo, naquela época, aprender a ler, educou todo mundo musicalmente […]. Foi um cara muito importante pra gente, pra todo mundo. (Ferreira apud Rodrigues, 2024)


Natural de Atibaia, Celso Oswaldo Salgado nasceu em 26 de fevereiro de 1957, e iniciou sua trajetória musical aos 14 anos na Corporação 24 de Outubro. Em 1974 ingressou na Escola Municipal de Música de São Paulo como clarinetista e, na década seguinte, integrou a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo e a Orquestra Sinfônica Jovem Municipal de São Paulo. Já na década de 1990, Celso participou da Orquestra Sinfônica de Bragança Paulista como clarinetista e, posteriormente, fagotista. Foi nesta década de o músico passou a contribuir com diversas bandas da cidade: além da FAMA, ajudou no processo da Banda Paulo de Tarso, da Camerata Ethos, e do Quarteto, posterior Quinteto, de Sopros de Atibaia. Sua rotina era dividida entre a música e sua dedicação à docência na rede estadual de ensino. Formado em História, ele atuou até 1994 nas salas de aula.

Depois da saída da FAMA, Celso ainda realizou diversos trabalhos de destaque, muitos deles ligados à memória e preservação da música atibaiana. Além disto, foi professor do Projeto Guri nos polos de Bragança Paulista e Atibaia, já nos anos 2000, mesma década onde também organizou a primeira Banda de Concerto de Atibaia, a Banda Sinfônica Primeiro Movimento, em 2002.³


2.2.3. Domingos Sacco

Antônio Domingos Sacco foi coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo e regente de diversas corporações. Nascido em Jaboticabal em 10 de agosto de 1939, filho de italianos, o maestro começou suas atividades musicais ainda muito jovem, se tornando instrutor da Fanfarra do Instituto de Educação Aurélio Arrobas Martins, aos 15 anos de idade, em sua cidade natal. Em São Paulo, foi Comandante do Copo Musical da Polícia Militar do Estado de São Paulo, ganhando, para muitos, o status de maior autoridade em bandas e fanfarras do Brasil. Além disso, foi maestro da já citada fanfarra do Colégio Técnico Paralelo. Domingos foi fundamental para o desenvolvimento das bandas e fanfarras do interior paulista, onde dirigiu grupos, como o do colégio Major Juvenal Alvim, em Atibaia, tricampeã paulista e tricampeã brasileira, e também capacitou diversos outros regentes. Se aposentou da Polícia Militar em 1991 e passou a atuar na Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, onde iniciou projetos como o “Vamos bagunçar o coreto”, que visava reerguer a cultura de bandas no estado. Em 1995, presidiu a primeira reunião da recém-fundada Confederação Nacional de Bandas e Fanfarras, em Brasília. Participou de inúmeros ensaios e auxiliou em diversos arranjos da FAMA em 1996, sendo também um dos elos de ligação entre a Fanfarra de Atibaia e o maestro Rogério Brito, que assumiria o grupo mais tarde, no mesmo ano (Visconti, Facebook, 2020). Os músicos da FAMA relembram a passagem do maestro Domingos como um maestro “linha-dura”, que exigia muito de seus músicos. A vasta experiência do regente, no entanto, foram fundamentais para o desenvolvimento do grupo.



Figura 9. Maestro Domingos Sacco à frente da FAMA, em 1996. Arquivo pessoal de Felipe Ibraim Ferreira.


Descrição: Ao centro, o maestro Domingos Sacco. Se encontra com uma camisa clara, possui cabelo e bigodes grisalhos. Está com as duas mãos fechadas sobre o peito. À frente dele, membros da fanfarra estão sentados, com seus instrumentos de metal e estantes com partituras. Ao fundo, é possível ver algumas outras pessoas, troféus e alguns itens diversos, além de uma parede com três grandes janelas basculantes de vidro.


2.2.4. Rogério Wanderley Brito

Rogério Wanderley Brito foi maestro da FAMA a partir de 1996, dividindo a função de regente com Reginaldo e auxiliado pelo seu irmão, Wagner Wanderley Brito. Natural de São Paulo, nascido em 15 de junho de 1962, Rogério possuía grande experiência com fanfarras, tendo iniciado seus estudos aos 7 anos de idade tocando corneta no Colégio Consolata, em São Paulo, grupo onde se tornaria regente mais tarde, em 1992, permanecendo por dois anos à frente do conjunto. Dominava também o trompete, com passagem pela Banda Marcial do Colégio Arquidiocesano de São Paulo, e se formou em música pela Faculdade Mozarteum de São Paulo, em 1987, tendo estudado também, posteriormente, Composição e Regência na Universidade Estadual Paulista (UNESP) (Abanfare, 2020). Seu trabalho de maior destaque antes da FAMA, no entanto, foi na fanfarra do Colégio Centenário, em São Paulo, que iniciou em 1988. A fanfarra do Colégio Centenário, vale lembrar, foi uma das fanfarras presentes no desfile que ocorreu na cidade em 1989.

A maior aproximação com a cidade de Atibaia aconteceu por acaso: a partir do amigo Domingos Sacco, Rogério veio até o município para ajudar a banda com a execução de alguns arranjos que o maestro Sacco o havia encomendado. Com o passar do tempo, Domingos pediu a Rogério que ficasse em definitivo com a FAMA, dividindo a regência com o maestro Reginaldo (Brito, Atibaia TV, 2013).



Figura 10. Maestro Rogério Wanderley Brito em 2010. Disponível em: https://projetomusicacidadania.webnode.page/midia/


Descrição: ao centro, o maestro Rogério Brito. Está apontando para frente com o braço direito. Veste um agasalho preto com detalhes em verde e símbolo da FAMA. Tem o cabelo castanho longo, preso, e barba grisalha. Ao fundo, espectadores e parte de vegetação.


Rogério foi fundamental na construção do projeto “Música e Cidadania”, tendo papel-chave como Diretor de Cultura, cargo que exerceu na administração do prefeito Beto Trícoli, promovendo uma verdadeira revolução no aspecto formativo do grupo. O maestro esteve à frente do conjunto em conquistas marcantes, como o campeonato mundial de 2005, em Taubaté, que lhe rendeu, inclusive, o título de “Cidadão Benemérito” no mesmo ano, além de também ser o condutor do grupo nas conquistas internacionais na Holanda, em 2009, e na Alemanha, em 2010. Rogério também exerceu o cargo de suplente no Conselho Municipal de Patrimônio Cultural, em 2005, e no Conselho Municipal de Cultura, em 2007.

Além de seu trabalho em Atibaia, o maestro ganhou destaque pelo seu trabalho na Fanfarra Municipal de Taubaté (FAMUTA) e pelos outros projetos que coordenou e ajudou a fundar, como o “Taubaté o Vale da Musica”, em Taubaté, e o “Música na Escola”, na cidade de Bragança Paulista. Ao todo, soma diversos títulos em campeonatos estaduais, nacionais e internacionais (Gomes, 2020).


2.2.5. Felipe Ibraim Ferreira

Nascido em Atibaia no dia 10 de janeiro de 1980, Felipe Ibraim Ferreira é filho do primeiro mastro da FAMA, Reginaldo Ângelo Ferreira.

Felipe iniciou sua trajetória musical no grupo de Atibaia em 1991, tocando, assim como o pai, a corneta, aos 11 anos de idade. No entanto, ao contrário do que se pode imaginar, o interesse pela música não veio de maneira automática. Antes da criação do conjunto de Atibaia, mesmo com o pai envolvido com diversas bandas da região, o garoto não despertou grande vontade de desenvolver suas habilidades musicais. Os ensaios aos finais de semana e na parte da noite, já que o maestro ainda precisava manter seu trabalho formal e as bandas eram apenas um passatempo, não auxiliavam nessa aproximação. Com a FAMA, no entanto, as coisas começaram a mudar. Como conta em entrevista:


Quando começou a FAMA aqui eu comecei a frequentar os ensaios […] A gente ia lá pra brincar. Seu Sebastião, que era um ajudante lá, um cara que coordenava o trabalho lá botava a gente pra correr, a molecada ia toda pra lá brincar de pega-pega dentro daquele pátio que ficava aberto a noite, né? Então a gente não queria saber de fanfarra. Mas a gente começou a prestar a atenção no trabalho, né? Falar assim: “nossa! Legal isso aí! Nossa.. Interessante”. Aí você fica lá acompanhando, acompanhando, chega no domingo a fanfarra vai viajar e você não vai, aí você fala: “poxa, eu quero ir também”. Aí fui pegando gosto. (Ferreira, Us Podcast, 2022)



Figura 11. Felipe Ibraim Ferreira. Arquivo pessoal.


Descrição: ao centro, o jovem Felipe Ibraim Ferreira traz, junto à boca, um trompete. Tem cabelo preto, está vestindo uma camisa branca e calça preta, com um relógio no pulso esquerdo. À sua frente se encontra uma estante com partitura musical. Ao fundo, outros músicos também com seus instrumentos.


A partir deste início, Felipe começou então seu envolvimento intensivo no universo de bandas, se tornando membro efetivo do conjunto de Atibaia e sendo um dos poucos que pode se orgulhar de dizer que, com exceção da primeira apresentação, esteve presente em todas as outras. Além da corneta, aprendeu a tocar o trompete e integrou também a Orquestra Sinfônica Jovem do projeto, criada em 2006. Já na fase adulta, se formou como pedagogo na Faculdade de Atibaia em 2008.

Mussum, em entrevista, conta que sempre viu grande potencial em Felipe: “’Eu vou fazer de você o maestro!’ eu falava pra ele”, brincava com o então garoto. E seguindo os passos do progenitor, Felipe se tornou regente de diferentes grupos na região, iniciando seu trabalho como maestro na fanfarra da cidade de Bom Jesus dos Perdões, no ano 2000. Em 2001, assumiu a direção da fanfarra da cidade de Nazaré Paulista, elevando-a a uma das mais respeitadas e vencedoras do país e, a partir do ano de 2003, passou também a conduzir a Fanfarra Municipal de Atibaia em tempo integral, ao lado dos irmãos Rogério e Wagner Brito. Atualmente, aos 44 anos, segue no grupo dividindo a regência do conjunto com o maestro Luís Henrique Chinaglia.


2.2.6. Luis Henrique Chinaglia

Outra “cria da FAMA”, Luís Henrique Chinaglia é natural também de Atibaia, nascido em 15 de janeiro de 1986. Neto do renomado maestro Frederico Suppione, Luís teve contato muito cedo com a música, embora tenha sido na Fanfarra de Atibaia, em 1995, aos 9 anos de idade, que a inclinação para a música tenha sido, de fato, manifestada:


O meu avô era maestro da Banda 24 [de Outubro] também. Então sempre na casa dele tinham diversos instrumentos, ele tocava piano. Eu sempre escutei, mas nunca tive interesse, nunca tive essa visão pra futuro, nunca almejei isso. […] A fanfarra mudou e eu mudei do lado da fanfarra, e meu pai era muito amigo do Reginaldo. E meu pai era militar, né? E ele sempre quis que eu fosse da banda do exército, era um sonho dele. […] E daí eu fui uma vez, ele me deu o bocal, ele: “vai, vibra a boca”, eu vibrei, toquei, dai: “é isso aí! Pode pegar a farda, você vai pra apresentação”. (Chinaglia, Us Podcast, 2022)


Luís iniciou sua trajetória no grupo então tocando o eufônio, mas logo passou a dominar o trombone pela influência do músico Ronaldo Siroky:


Eu entrei no final de 95. 96, 97 tinha um pessoal começando a estudar instrumentos já profissionais, e um deles era o Ronaldo Siroky. […] E daí o Ronaldo falou: “você vai tocar trombone”. Ele tinha um tromboninho lá, me emprestou, depois eu comprei o trombone, eu comecei a ter aula com ele, levar a sério, fui estudar em São Paulo e as coisas foram acontecendo. (ibid.)


Luís deu prosseguimento à sua formação, em 1999, na Escola Municipal de Música em São Paulo, passando, posteriormente, por diversas bandas, conservatórios e festivais. No mesmo ano, com apenas 13 anos de idade, teve também sua primeira experiência à frente de uma fanfarra, na Escola Municipal Professora Maria Helena Faria Ferraz, instituição localizada no bairro Parque das Nações, em Atibaia. O convite foi feito pelo próprio maestro Reginaldo. E parece que a intuição do regente se mostrou certeira: Luís desenvolveu seu trabalho com sucesso no colégio por 10 anos, além de assumir outros conjuntos na região. Posteriormente, se formou em Pedagogia, em 2011, no Centro Universitário Uniseb, cursou Licenciatura em Música na Universidade Metropolitana de Santos, formando-se em 2017, além de diversas especializações em Educação Musical (2019), Regência Orquestral (2021) e Pedagogia e Performance de Instrumento de Sopro (2022). Além disto, se tornou educador de outros projetos, como no Projeto Guri, nos polos de Bragança Paulista e Jundiaí, ministrando aulas de eufônio e tuba e assumindo a regência da Orquestra Sinfônica do Grupo de Referência de Jundiaí entre os anos de 2016 e 2023.



Figura 12. Luís Henrique Chinaglia (à esquerda) ao lado de Mussum (centro) em apresentação da FAMA. Arquivo de Felipe Ibraim Ferreira.


Descrição: na imagem, é possível ver diversos membros da FAMA com seus instrumentos de metal junto aos lábios, com os braços erguidos, enquanto sopram. Vestem fardas azul-marinho com detalhes em dourado e preto. Seus instrumentos trazem bandeiras vermelhas com detalhes dourados e os dizeres “FAMA” em branco. Os membros da frente se encontram sem quepes, enquanto os de trás vestem quepes preto, dourado e com penas vermelhas. Ao fundo, vê-se parte de uma vegetação.


Na FAMA, Luís se tornou regente em 2013, assumindo também o cargo de coordenador técnico e pedagógico do Projeto Educando com Música e Cidadania, que mantém até os dias de hoje, aos 38 anos. É responsável ainda pela Banda Sinfônica e pela Orquestra de Câmara do projeto, e atua como educador musical em escolas particulares.


3. A criação do Projeto Educando com Música e Cidadania: descobrindo novos talentos

A Fanfarra de Atibaia vinha construindo, ao longo da década de 1990, sua trajetória de maneira sólida e as conquistas e o prestígio que alcançava junto à comunidade não deixavam dúvidas de seu sucesso. No entanto, diferentemente de muitas outras fanfarras, a FAMA não se via vinculada a nenhuma instituição de ensino regular, como um colégio ou universidade, e isto passou a se configurar como um grande desafio para o conjunto em sua necessidade constante por renovação. Com o passar dos anos dentro do conjunto, os músicos e bailarinos da FAMA se viam, muitas vezes e por diferentes motivos, incapazes de seguir no grupo: jovens que passavam a trabalhar e não conseguiam mais dedicar tempo de sua rotina à banda ou se viam obrigados a deixar Atibaia por conta dos estudos, membros mais experientes que passavam por momentos diferentes na vida, entre outros desafios. Isto fazia com que, de um ano para outro, naipes inteiros fossem praticamente perdidos e o trabalho precisava, constantemente, começar novamente do zero, muitas vezes com dificuldades de encontrar novos músicos para suprir essas necessidades. Vale lembrar que os músicos e bailarinos da fanfarra nunca foram remunerados pelos seus serviços, o que torna todo o engajamento ainda mais difícil em alguns cenários (Rodrigues, 2024).

Foi a partir da detecção deste problema que surgiu a ideia de transformar a fanfarra num projeto social de formação musical continuado. Nascia então, em 2002, o “Música e Cidadania”, com o objetivo de formar fanfarras mirins escolares, promovendo aulas de iniciação musical e de coreografia nos colégios municipais de Atibaia. Vale lembrar que, com o sucesso da FAMA, algumas escolas já haviam reativado suas fanfarras escolares, como o caso da já citada fanfarra da Escola Municipal Professora Maria Helena Faria Ferraz, conduzida pelo maestro Chinaglia. No entanto, o projeto previa reproduzir esse modelo para todas as escolas municipais e, assim, expandir sua área de atuação drasticamente. Desta forma, a princípio, a iniciativa previa que cada escola participante receberia um kit padrão de materiais composto por 55 instrumentos de percussão e de metais e teria designado três profissionais para a condução do trabalho: um monitor, um auxiliar estagiário e um responsável pela linha de frente, modelo que é mantido até os dias de hoje com algumas adaptações às necessidades de cada unidade escolar. Com a implementação desses conjuntos em diversas escolas do município, foi possível iniciar o processo de renovação constante dos conjuntos. Sobre este trabalho, Eliana Zimbres Silva declarou:


Foi em 2002 que começou toda essa proposta. Tinha o Rogério [Wanderley Brito] como Diretor de Cultura, então ele que deu início a isso. Na época era o prefeito Beto Trícoli, e aí conversando, o Rogério e o irmão fizeram a proposta de montar o projeto e aí deu início. […] E o projeto foi pegando força muito rápido, porque as pessoas queriam colocar os filhos em fanfarras, pra fazer música e tudo o mais. Então a partir daí foi indo muito, muito rápido.


A iniciativa deu frutos rápidos: em 2005 a fanfarra mirim da Escola Municipal de Ensino Fundamental Waldemar Bastos Bühler já havia se tornado campeã paulista no 5o Campeonato de Fanfarras e Bandas realizado na cidade de Lorena, em São Paulo, que contou com a participação de mais de 20 corporações musicais. A escola, que fica no bairro do Jardim Imperial, em Atibaia, levou, na ocasião, quatro troféus de primeiro lugar em sua categoria. O conjunto já contava com 80 integrantes e era regido pelo maestro Alan Eduardo dos Santos e coordenado pelos coreógrafos Camila dos Santos e Leandro de Souza (O Atibaense, 2005).



Figura 13. Fanfarra da Escola Municipal de Ensino Fundamental Waldemar Bastos Bühler em 2004. Arquivo de Maria Suellen Magalhães.


Descrição: Na imagem, perfilados com seus instrumentos, encontram-se diversas crianças carregando instrumentos de fanfarra. Vestem fardas pretas com detalhes em branco. No topo da imagem, pode-se ver uma cobertura e, ao fundo, algumas pilastras.


Uma das participantes da fanfarra da Escola Waldemar foi Maria Suellen Magalhães. Tendo iniciado seus estudos musicais tocando corneta, aos 10 anos de idade, no ano de 2002, Suellen, hoje musicista profissional e supervisora educacional de um importante projeto musical, destaca o papel da fanfarra em sua formação:


O papel do projeto foi fundamental pra tudo que aconteceu na minha vida depois. Isso em vários âmbitos, seja da minha formação enquanto pessoa, a questão civil, social e tudo que eu construí fora do meu ambiente familiar, as minhas próprias conclusões e concepções, tem muito do que eu vivi e aprendi no projeto. Toda a disciplina que a gente tinha, toda a rotina que a gente tinha. Era um conviver muito intenso, principalmente naquelas épocas em que a gente tinha competições. As minhas férias eram todas com eles, às vezes com ensaio de manhã, à tarde, e a gente adorava aquilo! Chegava fim de semana, se fosse fazer alguma coisa, às vezes era com o pessoal da banda também. Tem toda essa parte da formação do indivíduo, passa por isso. (Magalhães apud Rodrigues, 2024)


Além da formação do indivíduo, a musicista destaca o impacto que o projeto teve em toda a sua comunidade:


Quando eu comecei era um bairro muito diferente [o Jardim Imperial, bairro de classe média/baixa onde fica localizada a escola Waldemar Bastos Bühler]. Não tinha quase nada, era um bairro mais de casas, não tinha tantos comércios, as ruas não tinham asfalto, e foi muito curioso ver o quanto que a fanfarra trouxe visibilidade pra esse lugar, porque a fanfarra construiu esse senso de comunidade com os alunos, com os pais, a gente tinha um grupo forte, engajado. Quando tinha concurso existia um movimento de fazer rifa, de fazer barraquinha na festinha do bairro pra conseguir levantar dinheiro pra gente ter uma farda bonita. E a gente saía e ganhava, ganhava o concurso, e nisso você leva o nome da cidade, do bairro e isso foi transformando o entorno também do lugar. A gente foi percebendo melhorias. (Magalhães apud Rodrigues, 2024)


Com o sucesso da iniciativa e para dar suporte a este crescimento, ainda em 2005, o Projeto Música e Cidadania passou a ser gerido por uma associação independente, a Associação dos Amigos e Pais da Fanfarra Municipal de Atibaia (APAFAMA), que passou a fazer a administração em convênio com a Prefeitura de Atibaia. Segundo Eliana Zimbres Silva:


Com os próprios pais foi criada a Associação de Pais e amigos da Fanfarra. Mas uma coisa bem caseira. E aí foi crescendo e também a própria entidade foi criando outro corpo. Aí já começou a entrar contador, que faz toda a parte burocrática, financeira. Teve que se profissionalizar.


Além disso, com a verba destinada para as ações previstas, foi possível que as fanfarras e a própria FAMA renovassem seu acervo instrumental, abandonando os instrumentos “lisos” ou com apenas um pisto e adquirindo instrumentos mais modernos, transformando os conjuntos em bandas marciais, embora mantenha o nome de “fanfarra” até os dias de hoje pela tradição e reverência à sua história.²

Em 2006 o projeto já atingia 1.100 alunos do município em 14 escolas da cidade e já não se restringia a apenas formar fanfarras mirins. O “Música e Cidadania” passou a contar também com uma Orquestra Sinfônica Jovem, que mantinha cerca de 60 integrantes, e com as fanfarras infanto-juvenis, as populares “Faminhas”, formadas por jovens na fase intermediária do projeto, entre a iniciação musical nas escolas e a excelência técnica da FAMA. Todo esse trabalho rendeu à iniciativa o Prêmio Quality, honraria que visa reconhecer, distinguir e premiar a gestão de empresas e instituições que se destacam no mercado brasileiro, cuja a excelência na qualidade de seus produtos ou serviços contribuem efetivamente para o desenvolvimento socioeconômico do país. As empresas e instituições são indicadas para o conselho da Sociedade Brasileira de Educação e Integração e Internacional Quality Service, que anuncia seus vencedores. A entrega do prêmio aconteceu no Clube Hebraica, em São Paulo, e contou com a presença do maestro Rogério Brito, da servidora Eliana Zimbres Silva e do vice-prefeito da época, Ricardo dos Santos (O Atibaiense, 2006).



Figura 14. Recebimento do Prêmio Quality. Eliana Zimbres Silva (à esquerda), Rogério Brito (centro) e o vice-prefeito da época, Ricardo dos Santos (direita). Jornal O Atibaiense, 20 de maio de 2006.


Descrição: Eliana Zimbres Silva, à esquerda, e Rogério Brito, ao centro, seguram um certificado dourado. Ricardo dos Santos, à direita, segura em suas mãos um troféu, também dourado, posando para fotos. Os três se encontram com roupas sociais, predominantemente pretas. Ao fundo, banners do prêmio Quality podem ser vistos parcialmente.


Em 2007 o projeto já atingia 1.500 alunos em 15 escolas da rede municipal (Imprensa Oficial da Estância de Atibaia, 2007), e foi novamente premiado: desta vez com o prêmio Educare, prêmio nacional de excelência na educação concedido pelo grupo Educartis Corporation, onde conquistou o ouro na categoria “Cidadania na Educação – Organizações Públicas” com o case “Projeto Música e Cidadania”, em 11 de dezembro de 2007.

Em 2008, a APAFAMA foi reconhecida como de Utilidade Pública para o município de Atibaia, através da lei nº 3638, de 05 de março de 2008, de autoria dos vereadores Paulo Fernando Serrano Catta Preta e Ismael Antônio Fernandes e sancionada pelo então prefeito José Roberto Trícoli.

Em 2009 o projeto passou a contar com uma Big Band, a Big Band Jovem de Atibaia. Com a proposta apresentar ao público as nuances musicais do jazz, do blues e do soul e MPB, o grupo era regido pelo renomado maestro Roberto Sion. Sion, nascido em Santos em 6 de outubro de 1946, é saxofonista, clarinetista, flautista, arranjador e compositor. Estudante da Faculdade de Musica Berklee, em Boston, nos Estados Unidos, entre seus diversos trabalhos reconhecidos, destacamos seus três álbuns com o quinteto Pau-Brasil, suas turnês internacionais ao lado de nomes como Toquinho, Vinícius de Moraes e Tom Jobim, e seus anos como professor de saxofone na Escola Municipal de Música de São Paulo e no Centro de Estudos Tom Jobim, de 1994 a 2000, e como maestro titular da Orquestra Jovem Tom Jobim na EMESP – Tom Jobim, de 2001 até 2014. Os músicos da Big Band excursionaram por várias cidades e eram, ao contrário dos músicos da fanfarra, remunerados pelos seus trabalhos (Big Band Atibaia, Instagram, 2018). A iniciativa, no entanto, foi descontinuada pelo projeto em 2022.

Em 2012, como uma banda já consolidada no meio e um projeto que lhe rendia muitos frutos, Atibaia recebeu o Campeonato Sul-Americano de Bandas de Marcha e Show, organizado pela WAMSB Brasil. A competição, aberta ao público, aconteceu no Estádio Salvador Russani, no bairro do Alvinópolis, e contou com 21 corporações de quatro países: Brasil, Colômbia, Uruguai e Venezuela. A competição ocorreu entre os dias 24 de abril e 1º de maio e teve a banda de Bragança Paulista, conduzida pelo maestro Luís Henrique Chinaglia, como grande campeã (Castilho, 2012). O campeonato recebeu auxílio público para sua realização de 450 mil reais, verba destinada pelo então prefeito José Bernardo Denig. A cidade ainda vivia a expectativa de sediar o mundial de bandas de 2014, que acabou sendo realizado na cidade vizinha de Bragança Paulista.

Com a chegada do prefeito Saulo Pedroso à prefeitura de Atibaia, em 2013, eleito no pleito do ano anterior, o até então “Projeto Música e Cidadania” foi renomeado como “Projeto Educando com Música e Cidadania”. A mudança do nome ocorreu como uma forma de ressaltar o caráter formativo do projeto e reiterar o início de uma nova fase: as cores da fanfarra, predominantemente verdes, como o partido dos antigos prefeitos, foram substituídas pelo azul, branco e preto, e assumiu a direção-geral o maestro Luís Henrique Chinaglia, substituindo na função o maestro Rogério Brito.

O trabalho formativo do projeto e da FAMA foi reconhecido mais uma vez em 2019, quando foi nomeado como Ponto de Cultura por seu impacto sociocultural, tendo recebido certificação do governo federal.

Hoje, o Educando com Música e Cidadania atinge, aproximadamente, 2.000 estudantes em 19 escolas municipais e em sua sede própria, na região central de Atibaia. Por meio de uma concessão do Governo do Estado de São Paulo, ainda no ano de 2018, o espaço localizado na avenida Jerônimo de Camargo, 4103, local inaugurado em 1941 e que abrigou uma antiga estação de trem da Rede Ferroviária Federal e foi posteriormente usada pela FEPASA, foi repassado à Prefeitura de Atibaia que, posteriormente, cedeu, de maneira definitiva, parte do imóvel à Associação de Pais e Amigos da Fanfarra Municipal de Atibaia com a contrapartida da associação manter no local atividades culturais e de formação artística continuadas (Atibaia Hoje, 2018; Correio de Atibaia, 2024).



Figura 15. Sede atual do Projeto Educando com Música e Cidadania. Foto: Prefeitura de Atibaia.


Descrição: ao fundo, o prédio com tijolos à vista da antiga Estação Ferroviária de Atibaia, hoje, sede da FAMA e do Projeto Educando com Música e Cidadania. Em primeiro plano, à esquerda, um jardim e, acima, uma grade azul. No fundo, ao lado do prédio da estação, uma grande árvore.


A mudança de endereço definitiva, no entanto, aconteceu somente em 2024, com o novo espaço sendo inaugurado pelo prefeito Emil Ono no dia 11 de junho, com grande festa. No Centro Cultural Reginaldo Ângelo Ferreira são oferecidos à população cursos de instrumentos de cordas (violino, violoncelo, viola, contrabaixo, violão), madeiras (flauta transversal, clarinete, saxofone), metais (trompete, trompa, trombone, tuba), canto coral, dança (sapateado, jazz, balé), percussão, além de aulas de iniciação e teoria musical. As aulas acontecem semanalmente e são ministradas de maneira coletiva, com idades e número de participantes variáveis, por uma equipe que envolve mais de 50 profissionais, entre educadores, responsáveis pela administração, funcionários terceirizados e voluntários. O foco das aulas é direcionar os alunos para os grupos mantidos pelo projeto: alunos de cordas (com exceção do violão) e madeiras para as orquestras e para a Banda Sinfônica, fundada em 11 de março de 2022; alunos de metal e percussão para as orquestras e para as fanfarras (fanfaras escolares, fanfarras infanto-juvenis [Faminhas] e FAMA) e os demais grupos contam com conjuntos próprios, salvo as aulas de iniciação e teoria musical, que servem como apoio às demais atividades. Entre os profissionais que lecionam, estão músicos com educação formal em faculdades de música e conservatórios e outros formados no próprio projeto, que representam a sua maioria, e que passaram por anos de experiência dentro dos grupos e são preparados por meio de capacitações e estágios internos. Muitos destes educadores, portanto, retornam às escolas onde iniciaram sua trajetória para desenvolverem, agora como professores e músicos profissionais, seus trabalhos.



Figura 16. Inauguração do Centro Cultural Reginaldo Ângelo Ferreira, em 11 de junho 2024. Foto: Prefeitura de Atibaia.


Descrição: Da esquerda para a direita, se encontram perfilados: o secretário de Obras da cidade de Atibaia, Virgílio José Guatura; o coreógrafo da FAMA, Leandro Eduardo Sousa; o maestro da FAMA, Felipe Ibraim Ferreira; a primeira-dama de Atibaia, Tamy Ono; o prefeito de Atibaia, Emil Ono; a secretária de Cultura de Atibaia, Glória Diniz; a madrinha da FAMA e funcionária pública, Eliana Zimbres Silva; o maestro da FAMA e coordenador Luís Henrique Chinaglia; e a coreógrafa da FAMA, Mariana Cordeiro Farias. À frente de todos, a placa de inauguração do espaço apoiada sobre um cavalete de madeira. Ao fundo, um banner com o logo da Prefeitura de Atibaia.


4. Considerações finais: a identidade criada pela música

No jornal Atibaia Hoje, de julho de 1999, uma matéria já exaltava o lado formativo e social da fanfarra:


Eles são jovens ocupados, felizes, produtivos. Além do aprendizado da música, os integrantes da Fanfarra Municipal de Atibaia recebem lições de disciplina, respeito e humanismo. Os maestros funcionam como pais e professores para a vida, reconhecem as famílias que têm integrantes da Fanfarra.

[…]

Agradeço muito aos maestros. Quando fiquei viúva, meus filhos se encontraram na Fanfarra. Hoje, eles são bons meninos, não têm vícios, gostam do que fazem. Estou contente, sem preocupação” falou Zélia Horasillia Siroky, mãe de Ronaldo [membro da fanfarra na época]. (Atibaia Hoje, 1999)


O acolhimento promovido dentro do conjunto se torna mais do que um passatempo para seus integrantes, mas algo que marca de maneira decisiva suas trajetórias, a ponto de formar, inclusive, diversos profissionais. Muitos são os exemplos de alunos que iniciaram os estudos musicais dentro dos grupos do Projeto Educando com Música e Cidadania e hoje se profissionalizaram na área, segundo relato do maestro Chinaglia. Conservatórios, faculdades de música, orquestras, bandas militares, entre outros são destinos comuns de muitos jovens que participaram da iniciativa. Como afirmou certa vez o maestro Rogério: “A nossa batalha perdura porque vemos que é possível a criança sonhar em viver de música” (Brito apud Favaro, 2010). A madrinha do conjunto, Eliana, compartilha desta visão:


É um orgulho pra gente ver um menino que cresceu, está se profissionalizando, está ganhando com isso, vai pra São Paulo, é maravilhoso! Você vê que vale a pena qualquer investimento. Todo o investimento que é feito é até pouco pro que vai atingir lá na frente.


Depoimentos de alunos que passaram por este processo reafirmam o que tem sido construído com a iniciativa:


Ingressei na Fanfarra aos 12 anos. Devo À FAMA toda a minha formação musical. Tornei-me monitora do Projeto Musica e Cidadania em três escolas municipais, onde posso constatar o que a FAMA representa para as crianças. A nossa Fanfarra é, hoje, o máximo, um objetivo a ser alcançado por elas, e seus integrantes são seus ídolos, alguém em quem se espelhar. (Moreira apud Imprensa Oficial da Estância de Atibaia, 2007)


O Projeto Música e Cidadania é um primeiro degrau para ingressar na FAMA. Na formação da nossa fanfarra, 90% dos integrantes saíram deste projeto que desperta na criança o interesse e a consciência de sua capacidade para a música, além de abrir novos horizontes e a perspectiva de alcançar um sonho: se tornar um grande músico, no futuro. (Pascui apud Imprensa Oficial da Estância de Atibaia, 2007)


As oportunidades sociais que o projeto promove impactam também de maneira decisiva seus participantes, como ressalta, em matéria publicada no jornal O Estadão, o antigo maestro Rogério Brito: “Tem crianças que nunca tinham visto o mar. A primeira vez que viram o mar foi no Chile [no Festival Internacional de Bandas e Fanfarras que aconteceu em Melipilla, o qual a FAMA participou em 2006]. Tem adolescente que nunca tinha ido a São Paulo e conheceu a Holanda [no World Music Contest, realizado na cidade de Kerkrade, em 2009]” (Brito apud Favaro, 2010). As experiências sociais proporcionadas pela música são importantes fatores da construção desses indivíduos, assim como o impacto que o palco traz para estes mesmos meninos e meninas. O trabalho social promovido pelos diversos grupos do Projeto Educando com Musica e Cidadania impacta a autoestima, o senso de comunidade e a confiança de seus participantes. Como ressalta o maestro Chinaglia:


Trabalhar com classes sociais diferenciadas acaba, dentro de um grupo, na prática de conjunto, sendo um só. A gente acaba unificando. Então você pode ser de uma classe social de alto padrão ou baixa, mas ali, no momento, você está num conjunto. Então é muito importante essa prática de conjunto, porque você acaba desenvolvendo essa autoestima, a confiança, a interação, você está dependendo do seu companheiro, isso mostra que a gente não faz nada sozinho, a gente necessita do coletivo, necessita do próximo. Então eu vejo que a banda tem esse poder de transformar o individual pro coletivo. […] A gente tem alunos que não tem uma condição financeira bacana, mas ali dentro ele se sente bem, se sente importante. E não é só porque ele está tocando na FAMA, é porque ele vê que, no coletivo, ele tem a sua função, e dentro da sua função ele é importante. (Chinaglia apud Rodrigues, 2024)


E ele completa:


Nós acreditamos que uma banda vai muito além do trabalho musical, e ajuda a transformar a realidade de um aluno que muitas vezes mora em bairros afastados da cidade e enfrenta dificuldades financeiras, familiares, etc. A música eleva as pessoas, ensina valores como disciplina, cooperação, união, tudo isso desenvolvido de maneira coletiva, com muito respeito e carinho. Estamos plantando sementes para o futuro. (Chinaglia apud Rodrigues, 2018)



Figura 17. Participantes da FAMA na Alemanha, em 2010. Disponível em: https://projetomusicacidadania.webnode.page/midia/


Descrição: diversas pessoas, abraçadas e sorrindo, posam para uma foto. Vestem agasalhos pretos com detalhes em verde. Ao fundo, vê se vegetação e, à esquerda, uma bandeira do Brasil.


A partir destes processos de transformação da realidade, todos os envolvidos, direta e indiretamente em torno da fanfarra e dos demais grupos, passam a se sentir pertencentes e orgulhosas dos resultados obtidos pelos conjuntos e se tornam, mesmo que na periferia destas comunidades, partes fundamentais da construção das mesmas. As “mães e pais” da FAMA, parentes de estudantes do projeto que, de forma voluntária, se engajam nas atividades de organização do conjunto, como auxílio na preparação das fardas, lanches, carregamento de instrumentos e outras funções, demonstram essa força. Como declarou uma destas mães, Viviane Panarini:


Toda mãe de apoio se une, uma ajuda a outra. Porque a gente lava, passa, limpa, transporta, carrega, auxilia, dá colo, enxuga lágrima, dá carinho, dá apoio, enfim, uma apoia a outra. […] O carinho que a gente recebe das crianças vale muito a pena […] Quando eu não vou na FAMA todo mundo pergunta por mim, as meninas e meninos: “cadê a tia Vi?”, isso vale muito a pena. (Panarini apud Rodrigues, 2024)


E completa:


Vale muito a pena, porque a gente está no apoio ali, lutando por um só objetivo, fazendo com que eles saiam impecáveis, vitoriosos, uma grande família unida, todo mundo ali dando o melhor de si […] Ser FAMA é fantástico, é um espetáculo da vida! (ibid.).


Outro exemplo contundente desse impacto na comunidade se deu em 2010, quando a FAMA precisou angariar recursos para representar o Brasil no campeonato promovido pela World Association of Marching Bands, que aconteceria em Postdam, na Alemanha. A viagem aconteceria entre os dias 26 de julho e 2 de agosto e teve seu custo estimado em 300 mil reais, valor que não poderia ser bancado em sua totalidade pela prefeitura da cidade. Coube então à sociedade civil dar suas contribuições a esta empreitada. Como escreveu o jornal O Atibaiense de 8 de maio de 2010:


As doações já começaram e bem – o empresário Rubens Carvalho, proprietário da concessionária Fiat em Atibaia, doou um veículo, o novo Uno, para uma rifa, que terá 25 mil números, com cartazes e folhetos distribuídos pela cidade, e poderá resultar em R$120 mil. […]

Esse movimento mostra que a FAMA é uma instituição de Atibaia, acima de diferenças políticas ou de limitações de grupo ou sociais. Além de Rubens Carvalho, houve a disposição de ajudar por parte de outros empresários, autoridades e instituições. O diretor do Fórum, dr. José Augusto, destinou R$10 mil da verba que administra. Câmara Municipal, Hospital Novo Atibaia, Huf e Centro Empresarial Atibaia também vão colaborar, mas os valores das doações ainda não foram definidos.

Pais, adolescentes e crianças da Fanfarra também estão fazendo rifas e procurando outros apoios. Das apresentações recentes, em que foram cobrados ingressos (incluindo a Big Band), foram obtidos mais de R$11 mil. A FAMA está correndo para realizar mais um sonho profissional […]. (O Atibaiense, 2010)



Figura 18. Divulgação da campanha de rifa, 2010.Arquivo do Projeto Educando com Música e Cidadania.


Descrição: campanha publicitária que traz, no centro, uma membra do corpo coreográfico da FAMA sorrindo, olhando para a foto. Ela veste um collant branco com detalhes em verde e um quepe também branco. Ao fundo, músicos fardados trazem nas mãos seus instrumentos de metal. Vestem fardas verdes com detalhes em preto e quepes pretos com detalhes verdes e penas verdes e brancas. Na parte de cima, os dizeres: “Fanfarra de Atibaia parte para nova conquista na Europa”. Na parte de baixo: “Esse carro vai nos ajudar a chegar na Alemanha”, exibindo um carro amarelo. Na parte inferior da divulgação, detalhes da ação e o logo dos apoiadores.


Com a mobilização popular, a FAMA conseguiu angariar os fundos necessários para a viagem, conquistando o terceiro lugar no campeonato e voltando para casa com uma medalha de ouro na bagagem (Atibaia e Região, c2018). Portanto, não há dúvida que os impactos sociais proporcionados pelo Projeto Educando com Música e Cidadania possuem implicações para muito além daqueles inseridos em seu fazer musical, mas transformam também toda a cidade através de seu trabalho de formação e construção de trajetórias e memórias coletivas. Desta forma, falar sobre a Fanfarra Municipal de Atibaia é trazer à tona uma parte importante da história de muitos atibaianos que, impactados como músicos, espectadores, pais ou simpatizantes do grupo, constroem suas identidades em torno deste conjunto.

Registrar este passado vai de encontro a um antigo desejo do maestro Reginaldo Ângelo Ferreira. Em matéria publicada no jornal O Atibaiense de 24 de fevereiro de 1999, o regente já externava sua vontade de manter a história da fanfarra viva:


A Fanfarra Municipal de Atibaia está iniciando um trabalho de levantamento sobre sua história. O maestro Reginaldo Ferreira faz a convocação: “Se você já participou da Fanfarra Municipal de Atibaia, em algum momento da sua história, vá até a sede da FAMA – rua Albertina Mieli Pires, 145 – para colocar seu nome num livro histórico a respeito do grupo. Se você tem fotos, elas também serão úteis para esse trabalho de reconstituição da história da Fanfarra”. (O Atibaiense, 1999)



Figura 19. Jornal O Atibaiense de 24 de fevereiro de 1999.


Descrição: a imagem, retirada do jornal O Atibaiense de 24 de fevereiro de 1999, traz o título “Fanfarra inicia trabalho de levantamento histórico” e, abaixo, um foto, em preto e branco, que traz membros da fanfarra perfilados em semi-círculo, fardados e com algumas estantes de partitura à frente, junto do então prefeito Pedro Maturana, ao centro, e alguns membros de apoio.


Hoje, mais de 20 anos depois da convocação do maestro Reginaldo, nós damos o pontapé inicial nessa árdua tarefa de contar estas narrativas, na certeza de que muitas ainda ficaram de fora e que tantas outras ainda podem preencher páginas e mais páginas de muitos registros.

É verdade que nem todas partes desta história são de alegria. Momentos de dificuldade também estão presentes nesta trajetória. É verdade também que nem todos da cidade de Atibaia apoiam as fanfarras, muitos deles incomodados com uma possível ligação das bandas marciais com uma visão militarizada e conservadora da sociedade. As fardas e toques não escondem, de fato, este passado. No entanto, seja você um entusiasta dos conjuntos marciais ou um crítico, é inegável que a Fanfarra Municipal de Atibaia e o Projeto Educando com Música e Cidadania se tornaram parte de quem somos, cravando em nossas memórias momentos únicos e impactando milhares de pessoas através dos seus anos de existência. Entre músicas, marchas e metais aprendemos, experienciamos e compartilhamos um pouco do que é pertencer e vivenciar a cidade de Atibaia.


Notas

1. No trecho citado existem diversos prováveis erros de digitação, como no nome de Sidney Cotrim Malmegrim e na referência a uma desconhecida banda “14 de Outubro” que, provavelmente, procurava se referir à banda 24 de Outubro, esta sim de grande prestígio na cidade e amplamente conhecida. A citação, no entanto, foi mantida como no documento original. A manutenção das citações sem alterações, mesmo quando contarem com erros claros, serão adotadas em todo o trabalho, com avisos sobre estes possíveis erros quando os mesmos alterarem a compreensão do documento.

2. Os conceitos de “banda marcial” e “fanfarra” utilizados neste trecho entendem as fanfarras como formações instrumentais que utilizam somente instrumentos de sopro “lisos” ou com apenas um pisto, enquanto as bandas marciais possuem instrumentos mais modernos e/ou de vários pistos, como trompetes, trompas, trombones de vara, entre outros que permitem o uso de escalas cromáticas. No entanto, diversos autores abordarão as fanfarras como uma subdivisão das formações possíveis de bandas marciais. Por isso, em alguns momentos do texto, os termos “banda” e “fanfarra” são utilizados como sinônimos.

3. Release fornecido por Celso Salgado.



Referências Bibliográficas

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Rodrigues, Flávio. Construindo uma comunidade através da música: um olhar sobre o Projeto Educando com Música e Cidadania de Atibaia (SP). Revista da Abem, [s. l.], v. 32, n. 2, e32204, 2024.


Jornais e Revistas

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Atibaia Hoje. Famílias da Fanfarra elogiam a formação de jovens. Atibabia, 31 jul. 1999, p.14.

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Castilho. Banda Marcial de Bragança Paulista vence Sul-americano 2012. Jornal Em Dia Bragança. Bragança Paulista, 5 maio 2012. Disponível em: https://jornalemdia.com.br/noticias/banda-marcial-de-braganaa-paulista-vence-sul-americano-2012-1.html. Acesso em: 18 jun. 2024.

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Favaro, Tatiana. Fanfarra paulista faz sucesso internacional. Estadão. São Paulo, 12 abr. 2010. Disponível em: https://www.estadao.com.br/sao-paulo/fanfarra-paulista-faz-sucesso-internacional/. Acesso em: 10 set. 2023.

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O Atibaiense. Atibaia recebe prêmio nacional por projeto musical. Atibaia, 20 mai. 2006 [recorte].

O Atibaiense. FAMA 25 anos: bodas de prata e resultados de ouro: Com uma trajetória repleta de vitórias e conquistas, a fanfarra municipal de Atibaia é inspiração para jovens alunos. Cidade, A9. Atibaia, 28 nov. 2015 [recorte].

O Atibaiense. Fanfarra ganha veículo para ajudar na viagem à Alemanha. Atibaia, 8 mai. 2010 [recorte].


Entrevistas primárias

Costa, José Gilberto “Mussum”. Entrevistador: Flávio Rodrigues. 2024.

Chinaglia, Luís Henrique. Entrevistador: Flávio Rodrigues. 2024.

Ferreira, Felipe Ibraim. Entrevistador: Flávio Rodrigues. 2024.

Silva, Eliana Zimbres. Entrevistador: Flávio Rodrigues. 2024.


Entrevistas e podcasts

Brito, Rogério Wanderley. Atibaia TV. Entrevistador: Agnaldo Villaça. 2013.

Chinaglia, Luís Henrique. Us Podcast. Entrevistadores: Christian Claudius Carvalho e Allan Aguirre de Carvalho. 2022.

Ferreira, Felipe Ibraim. Us Podcast. Entrevistadores: Christian Claudius Carvalho e Allan Aguirre de Carvalho. 2022.


Leis Municipais

Atibaia

Lei nº 1501/75. Disponível em: https://www.camaraatibaia.sp.gov.br//temp/25052024183036download_lei_1501.pdf. Acesso em: 19 jun. 2024.

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Lei nº 4192/13. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/sp/a/atibaia/lei-ordinaria/2013/420/4192/lei-ordinaria-n-4192-2013-dispoe-sobre-a-denominacao-de-centro-cultural-reginaldo-ngelo-ferreira-a-atual-sede-do-projeto-educando-com-musica-e-cidadania-localizado-no-bairro-atibaia-jardim-neste-municipio-e-da-outras-providencias?q=reginaldo+%C3%A2ngelo+ferreira. Acesso em: 19 jun. 2024.


Bom Jesus dos Perdões

Lei nº 1757/04. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/sp/b/bom-jesus-dos-perdoes/lei-ordinaria/2004/176/1757/lei-ordinaria-n-1757-2004-denomina-a-escola-municipal-de-ensino-infantil-localizada-na-rodovia-d-pedro-i-km-64-5-jardim-santa-maria-neste-municipio-escola-municipal-de-ensino-fundamental-maestro-reginaldo-angelo-ferreira?q=reginaldo+%C3%A2ngelo+ferreira. Acesso em: 19 jun. 2024.


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Visconti, Márcia. Facebook. Perfil Ab_capital. 14 set. 2020. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=2786799231594798. Acesso em: 18 jun. 2024.


Incentivo




Realizado com recursos da Lei de Emergencial Cultural Paulo Gustavo. Lei Federal nº 195/2022 e suas alterações



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