O que Doja Cat, fractal e forma arco têm em comum?
No Episódio #013 de RUÍDOS, eu e o Flávio demos umas analisadas marotas nas músicas indicadas ao prêmio de melhor canção no VMA 2020, e entre as várias coisas interessantes que a gente achou, uma em especial me chamou a atenção: a forma fractal da música “Say So”, da cantora Doja Cat.
Como nosso tempo era curto, afinal a gente tinha que analisar seis músicas em idealmente menos de uma hora, eu só consegui tocar um pouco na superfície do conceito de fractal e de como a música da Doja Cat apresentava vários exemplos disso na prática. Inclusive, depois de gravar eu achei mais coisas na música dela e pedi pro Flávio adicionar uns enxertos na nossa gravação. Insatisfeito, e depois do Flávio ter todo o trabalho de arrumar a sincronia da trilha, cortar e colar meu enxerto e tals, eu achei ainda mais coisas! Decidi, todavia, recorrer a este espaço ao invés de importunar o Flavito mais uma vez.
Mas enfim: o que é fractal? e como “Say So” pode ser analisada tendo esse conceito em mente?
Fractal, matematicamente falando, “é qualquer uma das inúmeras formas geométricas complexas onde qualquer parte aleatoriamente escolhida terá uma configuração semelhante dessa mesma forma observada em escala aumentada ou reduzida”.
Por exemplo, se a gente pega uma foto de um raio e dá um zoom em uma das partes do raio, a nova imagem terá uma forma parecida com a anterior. E se continuarmos esse processo, sempre acharemos formas semelhantes. Esse fenômeno é bastante comum na natureza, desde árvores, conchas de moluscos, até coisinhas pequeninas como o DNA e flocos de neve.
O conceito de fractal foi introduzido em 1918 pelo matemático alemão Felix Hausdorff, e o termo “fractal”, do latim “fractus” (quebrado, fragmentado) foi cunhado pelo matemático francês de origem polonesa Benoît Mandelbrot só em 1975. E foi a partir de Mandelbrot que o pessoal viu que os fractais eram ferramentas preciosas na matemática aplicada, inclusive dando origem a um novo sistema de geometria, que teve um impacto grande em diversas áreas das ciências duras.
Não demorou pro pessoal da música adotar esse conceito, e tanto na área de análise musical quanto na área da composição a ideia do fractal passou a ser explorada.
Por conta desse conceito ser aparentemente fácil de ser assimilado, não necessariamente todas as formas em que ele foi aplicado na música são usados de forma a respeitar todos os requerimentos necessários pra dizer que aquilo é um fractal “genuíno”. Em muitos casos, incluindo minha análise de “Say So”, a aplicação desse conceito é mais livre. E essa liberdade por vezes incomoda um pouco o pessoal da matemática que é mais rigoroso na aplicação de conceitos matemáticos em outras áreas.
Chegamos, então, à música de Doja Cat. Ao começar a explorar “Say So”, eu notei como existia um uso extensivo da forma ABA, chamada também de forma ternária, mas eu gosto de usar a expressão forma arco. Essa forma é extremamente comum porque, como o nome sugere, ela traz um começo, um meio e um fim que é igual ou similar ao começo.
Na literatura e no cinema essa forma arco também é muito usada: não é à toa que se fala em arco narrativo. Esse arco narrativo funciona basicamente assim: [A] personagem tá tranquilão; [B] personagem passa por alguma treta; e [A’] personagem volta a ficar tranquilão, mas meio diferente por conta da treta que passou.
Exemplos na música são muitos também. A forma sonata, muito comum no classicismo e romantismo, é basicamente um ABA digievoluído rebuscado. Temos uma seção que apresenta os temas, outra seção que os desenvolve e os leva a lugares nunca antes vistos, e uma última seção que traz os temas de volta, na segurança do lar. Na música popular também há diversos exemplos. “Se Ela Perguntar”, de Dilermando Reis, segue essa forma de maneira bem clara. Um exemplo mais ousado é “Rime of the Ancient Mariner”, do Iron Maiden. Aqui, temos que pensar mais panoramicamente: há uma primeira seção bem ativa, no meio temos uma seção sombria, e depois voltamos à atividade.
Em “Say So”, notei a existência da forma arco em diferentes níveis da música, e foi o que me levou a considerar que existia um elemento fractal escondido. Alguns exemplos de forma arco aqui são bem exagerados e apelões exigem uma flexibilidade interpretativa maior, e outros são claramente um ABA bem bonitinho. Indo do macro para o micro, foram estas as instâncias que encontrei:
[1] Ao dividir a música entre partes com voz e partes instrumentais, claramente se observa que as partes instrumentais ficam no começo e no fim, e o meio é inteiro cantado:
[2] A parte central é o rap, que se localiza exatamente na metade da duração da música e é o diferencial em relação ao restante da música, então considerei o rap como parte B. O que vem antes e depois, e que compartilham de material musical semelhante, considerei como sendo a parte A:
[3] Olhando pro ordenamento das estrofes, dá pra observar dois conjuntos de ABA. Tanto o verso quanto o rap possuem refrões antes e depois 1:
[4] Continuando a ampliação da estrutura, chegamos ao rap, que, como disse, é a parte central da música. Tanto a primeira quanto a última estrofes têm uma melodia com um ritmo mais fluido, movimentado. Já as estrofes centrais possuem um ritmo acentuando mais o pulso da música, deixando-os mais truncados:
[5] E finalmente o exemplo mais elementar, em escala mais micro: a primeira estrofe do rap. A primeira e a última linha possuem um ritmo que evidencia o pulso da frase, enquanto as linhas centrais têm um ritmo constante e fluido 2:
Aqui vai uma visualização de todas essas instâncias numa só imagem (mais o bônus que explico logo abaixo):
Como bônus, tem mais um exemplo de ABA, que na verdade precisa de um pouco de boa vontade pra aceitar. A parte instrumental do final da música tem duas partes distintas: a primeira possui os instrumentos tocando normalmente, e a segunda tem uma mudança brusca de sonoridade: o som fica todo abafado, com o sintetizador em evidência, a guitarrinha bem no fundo, e de vez em quando a batida grave aparece. Há durante essa segunda parte um crescendo que tenta trazer a música “original” de volta por duas vezes, só que isso não ocorre porque a música termina. Porém, fica uma sensação muito forte do retorno do groove original, o que eu chamaria de retorno eclíptico: a gente não ouve a primeira parte de novo, mas ela está lá. Ou seja, ao invés de interpretar essa seção como um AB, eu arriscaria jogar um AB[A] — eu avisei que precisava de um pouco de boa vontade!
Existe uma razão do porquê olhei pra esse final com cuidado. É graças a ele que a música de Doja Cat adquire um elemento a mais, que é o da simetria. Explico: o exemplo em menor escala da forma ABA, como mostrei, é a primeira estrofe do rap. E se a gente dividir a duração da música pela metade, a parte central da música ocorre justamente durante essa estrofe. Isso pode ser um fato de pouca importância para alguns, mas achei no mínimo intrigante — desconfio até se o produtor da música não o fez por acidente.
Acidente ou não, eu não acredito que todo o resto da minha análise tenha algo a ver em como de fato a música foi escrita e produzida. Ambos os fenômenos que eu usei, fractal e forma arco, são muito comuns de serem observados, além do mundo natural, em manifestações artísticas em que não existe a intenção desses fenômenos serem usados. Como disse, há análises de peças de Bach, Beethoven e cia. que usam o fractal, e a forma arco não é novidade nenhuma pra nenhum estudioso de qualquer tipo de música “ocidental”.
Acredito que a razão porque encontramos tantas semelhanças entre fenômenos naturais como fractais, proporção áurea etc. em músicas, é justamente porque estes são fenômenos naturais e o ser humano é, antes de tudo, um animal que está inserido no mundo natural. Então nosso próprio processo criativo vai reproduzir, num nível inconsciente, essas formas. Isso chega quase a ser uma não-questão, mas essa discussão é assunto pra um outro momento, senão ficamos aqui pra sempre!
E é isso, se você, pessoa leitora, possui alguma discordância, dúvida ou mensagens espirituosas, só mandar uma mensagem, deixar um comentário ou sinal de fumaça, que prontamente responderei prometo que farei o possível pra respondê-la.
1 Ao pessoal que manja teoria musical, vocês devem ter percebido que eu poderia muito bem chamar a forma da música como rondó, afinal, a estrutura de estrofes segue essa forma ao pé da letra. E você tem absoluta razão. Escolhi não fazê-lo no texto porque achei que ele já estava devidamente povoado de conceitos, e a introdução de um outro conceito só iria trazer poluição conceitual. E como bem colocou meu amigo Rafael Fajiolli no facebook, formalmente talvez seria mais correto dizer que essa é uma forma canção, pois a variação entre o verso e o rap não seria tão substanciosa pra designar uma seção própria ao rap. Ou seja, a forma da música seria mais um ABAB'A (canção) do que um ABACA (rondó).⇧
2 Dá pra argumentar que a explicação do exemplo 5 está em contradição com o exemplo 4, porque neste afirmo que na estrofe 1 há um ritmo fluido e naquele faço uma distinção entre fluido e truncado. Penso que, quando a gente olha pra estrofe 1 em contexto com as outras estrofes, ela apresenta uma característica mais fluida, e quando analisada somente ela mais de perto, aparecem essas nuances.⇧
Todo mundo sabe que o Tody só ficou inventando tudo isso pra ter uma desculpa pra ficar ouvindo "Say So" várias vezes e rebolando enquanto lava louça. Desconfio até que rolou paixão pela Doja Cat...
ResponderExcluirDoja Cat e Lady Gaga embalando minhas lavada de louça
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